quarta-feira, 23 de janeiro de 2013

UM NOVO IMAGINÁRIO, UMA NOVA MENTALIDADE: REFLEXÕES SOBRE OS FUNDAMENTOS BÍBLICOS DA RENOVAÇÃO DA MENTE


[Obs: Esta é uma e-pístola consolidada, que compila as e-pístolas anteriores sobre a renovação da mente lançadas ao longo de 2012 e janeiro de 2013. Lanço-a aqui para facilitar a busca da matéria]



I) A necessidade de renovação da mente: o exemplo do povo hebreu tirado da servidão do Egito

1 Então disse o Senhor a Moisés: 2 Fala aos filhos de Israel que me tragam uma oferta alçada; de todo homem cujo coração se mover voluntariamente, dele tomareis a minha oferta alçada. 3 E esta é a oferta alçada que tomareis deles: ouro, prata, bronze, 4 estofo azul, púrpura, carmesim, linho fino, pêlos de cabras, 5 peles de carneiros tintas de vermelho, peles de golfinhos, madeira de acácia, 6 azeite para a luz, especiarias para o óleo da unção e para o incenso aromático, 7 pedras de ônix, e pedras de engaste para o éfode e para o peitoral. 8 E me farão um santuário, para que eu habite no meio deles. 9 Conforme a tudo o que eu te mostrar para modelo do tabernáculo, e para modelo de todos os seus móveis, assim mesmo o fareis. 10 Também farão uma arca de madeira, de acácia; o seu comprimento será de dois côvados e meio, e a sua largura de um côvado e meio, e de um côvado e meio a sua altura. 11 E cobri-la-ás de ouro puro, por dentro e por fora a cobrirás; e farás sobre ela uma moldura de ouro ao redor; 12 e fundirás para ela quatro argolas de ouro, que porás nos quatro cantos dela; duas argolas de um lado e duas do outro. 13 Também farás varais de madeira de acácia, que cobrirás de ouro. 14 Meterás os varais nas argolas, aos lados da arca, para se levar por eles a arca. 15 Os varais permanecerão nas argolas da arca; não serão tirados dela. 16 E porás na arca o testemunho, que eu te darei (Êxodo 25:1-16 – Almeida Revista e Corrigida – grifos nossos).

O povo de Israel passou mais de quatrocentos anos na terra do Egito (Ex 12:40) e, por certo, vivendo no meio daquele povo durante várias gerações, influenciado por uma cultura idólatra e imoral, bem como pressionados pelo duro jugo da servidão, já não tinham mais uma mentalidade de povo de Deus.
Agora, fora do Egito, o Senhor tinha a tarefa longa de retirar o Egito do coração dos israelitas, construindo uma nova mentalidade, marcada pela devoção exclusiva a Ele, santidade e os valores que a caracterizam.
No texto acima transcrito, percebe-se que, além das leis que Deus concedeu ao seu povo por intermédio de Moisés para lhes pautar a conduta, o Senhor estabeleceu ordenanças para a construção do tabernáculo e dos objetos que o mesmo deveria conter, bem como dos rituais que eles deveriam realizar, tudo isso como forma de propiciar ao seu povo uma ampla renovação da mente, destruindo aquela mentalidade mundana que tinham adquirido no Egito.
E da mesma forma que aconteceu com o povo de Israel, Deus também quer tirar de nossa mente, nos dias de hoje, os padrões das obras mortas que trazemos da nossa trajetória de escravidão do pecado. A renovação da mente e os princípios bíblicos inerentes à mesma são, portanto, o objeto de apreciação e ponderação das considerações a seguir tecidas.

II) Conceitos preliminares e a necessidade de renovação da mente: quando a verdade não me liberta?

A nossa mente é moldada pelas experiências concretas que vivemos e os conceitos que abrigamos nela são formados não só de ideias que podemos expressar em forma de palavras, mas também de imagens que o nosso psicológico reproduz e a eles são agregados determinados sentimentos, bons ou maus, dependendo da experiência que tivemos, de modo que a nossa mente trabalha com “conceitos-sentimentos” ou “conceitos-imagens-sentimentos”, os quais nós internalizamos em nossos corações, no nosso homem interior e determinam os nossos padrões de comportamento (a esse respeito ver: SEAMANDS, David. O Poder Curador da Graça. 1 ed. 10ª impressão. São Paulo: Vida, 2006, p. 40).
A definição acima ficará mais clara com um exemplo. Suponhamos que uma determinada pessoa passou por um histórico de abuso emocional durante a infância e adolescência oriundo de seu pai, o qual passou todo esse período, dizendo que ela era burra, um acidente, que ela não iria ser ninguém na vida, entre outras palavras depreciativas, aliada a distância emocional que esse pai mantinha com falta de demonstração de afeto físico e palavras de carinho e incentivo, sendo extremamente crítico e áspero em relação a ela, nunca estando satisfeito com o seu desempenho. A pessoa que acabou por sofrer deste tipo de histórico, provavelmente absorveu-o como uma “verdade” para a sua vida e estas experiências concretas moldaram a sua personalidade de tal modo que ela desenvolveu uma mentalidade negativa, com baixa autoestima, abrigando conceitos de inferioridade e incapacidade em relação a si mesma e, assim pensando, terá uma série de sentimentos negativos e destrutivos em seu coração, tais como mágoa, ira, inveja, orgulho ferido, além de uma profunda tendência para o isolamento, falta de sinceridade, falta de segurança, tristeza profunda, autocomiseração, depressão, entre outros. Sua mente será como um “aparelho reprodutor de vídeos” que mostra “replays” dos acontecimentos que deixaram sua alma enferma e amargurada em seus sentimentos.
Tais “conceitos-imagens-sentimentos”, isto é, a nossa memória adquirida, formam a base psicológica sob a qual fundamentamos as nossas decisões e orientamos os nossos comportamentos. No exemplo acima descrito, a pessoa que passou pela rejeição na forma de abuso verbal e ausência de afetividade, tomada de conceitos e sentimentos negativos em sua mente, reproduzirá padrões distorcidos e destrutivos de comportamento, tais como uma mentalidade crítica e perfeccionista, exigindo demais das pessoas, tendo uma expectativa muito alta em relação aos seus relacionamentos, demandando que as pessoas com as quais convive atinjam as suas exigências pessoais de felicidade, além da possibilidade de desenvolver relacionamentos amorosos marcados pelo ciúme, possessividade e dependência emocional; a pessoa também desenvolverá mecanismos mentais de compensação da dor emocional sofrida na forma de fugas, escapismos, fantasias, vícios, comportamentos compulsivos, tais como alcoolismo, pornografia e vícios sexuais, drogas, trabalho em excesso, estudo em excesso, ativismo extremo, enfim, uma busca desenfreada pelo prazer imediato como forma de conviver e abafar a dor psíquica da rejeição (cf. THOMPSON, Bruce; THOMPSON, Barbara. Paredes do meu coração. Venda Nova: Betânia, 1994, p. 119-133).
Outro exemplo que pode tornar claro o que aqui se expõe é o da pessoa criada sem limites pelos pais. Uma pessoa assim tem dificuldades de ser ensinada e corrigida quando está errada, tem dificuldades de receber “não” das pessoas, uma vez que ela não teve a base necessária para tanto e tudo o que ela guarda no coração é uma autoimagem que se desenvolveu sob a base de poder satisfazer todos os seus impulsos e desejos de forma imediatista, tendo dificuldades de concretizar valores como a perseverança e a paciência, notadamente quando uma tarefa ou obra demandar metas e etapas de longo prazo, de modo que, se ela não consegue o que quer de forma imediata, ela tem a tendência de ficar frustrada, irritada, magoada e ansiosa facilmente, bem como seus relacionamentos dificilmente serão saudáveis, tendo em vista que essa pessoa não aprendeu a capacidade de renunciar e de ceder seus próprios interesses em prol de um bem maior, mas, ao contrário, essas experiências que formataram essa mente sem limites só serviram para fazer dela um indivíduo manipulador e controlador das pessoas e situações para satisfazer seus próprios interesses egoístas.
Diante dos exemplos dados acima, vemos que toda a pessoa é fruto de um processo de construção, ou seja, tem uma trajetória de vida; somos fruto da somatória de todos os pensamentos que recebemos como “verdade” em nossos corações e que nos motivaram a tomar as atitudes diante da vida, uma vez que os pensamentos e ações são regidos pela lei da semeadura; assim, tudo aquilo que semeamos em matéria de pensamento, colheremos em forma de emoções e comportamentos. A nossa mente precisa, portanto, de um amplo trabalho de renovação, a fim de que nós possamos aprender a pensar, a agir e a reagir de acordo com os padrões que Deus que estabeleceu, abandonando os velhos ditames do pecado, conforme se depreende da leitura de Romanos 12:1-2:

Assim que, irmãos, rogo-vos pelas misericórdias de Deus, que apresenteis vossos corpos em sacrifício vivo, santo, agradável a Deus, que é vosso culto racional. Não vos conformeis a este século, mas transformai-vos por meio da renovação do vosso entendimento, para que comproveis qual seja a boa vontade de Deus, agradável e perfeita (versão Reina-Valera de 1960, traduzida livremente do espanhol).   

Quando a verdade não me liberta? A Bíblia fala que o conhecimento da verdade nos liberta (Jo 8:32), contudo, o que temos visto é uma multidão mundana sentada nos bancos das igrejas, pessoas enfermas espiritual e emocionalmente. Por que a proclamação da verdade não libertou as pessoas? Uma das causas é que o “evangelho” pregado nos dias de hoje é extremamente superficial e as pessoas acabam por viver em uma congregação religiosa sem ter profundidade bíblica para orientar as suas vidas; não podemos nos enganar, o ensino da palavra de forma adequada e consistente é de vital importância para que uma igreja cresça de forma sadia, o que é negligenciado em muitas congregações em prol de um “evangelho de números”; o resultado disso é o desenvolvimento de igrejas inchadas de pessoas “doentes” e não convertidas, igrejas que acabam por se transformar em um “drive through” espiritual, extremamente rotativo, em que muitas pessoas entram e pegam um pacote de “lanche espiritual”, mas a quantidade dos que saem também é de grande proporção.
Quando a verdade não me liberta? Outra resposta para esta questão é que o evangelho pregado e ensinado para as pessoas não chega a tratar da raiz de seus problemas; acabamos andando em círculos no deserto, quando nos preocupamos em tratar apenas dos sintomas que nos afligem, sem, contudo, atacar a causa, a verdadeira raiz dos problemas. Os exemplos dados acima são emblemáticos nesse sentido; uma pessoa com histórico de rejeição, bem como a criada sem limites pelos pais, vem com uma série de deformidades de caráter e a transformação dessas pessoas será quase nula se o aconselhamento que ministrarmos somente se restringir às consequências visíveis de sua trajetória de vida; é necessário confrontar as estruturas de orgulho da pessoa que sustentam seus comportamentos desviados da verdade da Palavra de Deus; é necessário analisar, entender e confrontar o histórico de vida do aconselhado e o seu sistema individual de “conceitos-imagens-sentimentos”, no qual a pessoa se fundamenta para se gerir como ser humano, a fim de entender a forma como ela reage diante das circunstâncias e de identificar quais mecanismos pecaminosos ela aprendeu a utilizar para enfrentar a realidade; é preciso confrontar a raiz de sua amargura, de seus complexos de inferioridade, da baixa autoestima, da depressão, do orgulho, do prazer desenfreado; é preciso enfrentar as máscaras que a pessoa se utiliza para não enfrentar a dor da realidade.
A verdade só liberta quando temos intimidade com ela, quando ela chega aos quartos escuros de nossa personalidade, quando destrancamos a “câmara dos horrores” através da confissão e exposição de nossa vida para mostrarmos quem realmente somos de modo a sermos curados (Tg 5:16). Não se trata de um câncer com uma aspirina; é necessário usarmos a verdade da Palavra como um bisturi para extirparmos o tumor em sua totalidade e esse é um tratamento que, ainda que invasivo e doloroso, mostra-se eficaz o suficiente para trazer cura para pessoas que estão cansadas de viver da forma que vivem e que não dispõem da ferramenta e metodologia certa para se tratar (cf. BACKUS, William; CHAPIAN, Marie. Fale a Verdade Consigo Mesmo. 2 ed. Venda Nova: Betânia, 2000, p. 202-212).      

III) A necessidade da vontade de mudar e o papel da fé e da obediência

            A vontade é a matéria prima da renovação da mente. A transformação da mente é um processo que exige decisão da nossa parte. Temos que decidir ou nada mudará; temos que nos deixar tratar pelo Espírito Santo, tendo Cristo como alvo, aplicando as verdades da Palavra de Deus a fim de sermos transformados de glória em glória, isto é, em um processo gradual (2 Co 3:18). Temos de decidir levar os pensamentos cativos à obediência de Cristo (2 Co 10:5); decidir adotar como padrão para as nossas vidas os pensamentos puros, honestos, de boa fama (Fp 4:8; Cl 3:1-2) e não viver como o vive o mundo (Rm 12:2).
            O texto de Exôdo 25, acima citado, também demonstra esta verdade, quando o Senhor ordenou aos filhos de Israel que trouxessem ofertas voluntárias para a construção do Tabernáculo e de seus utensílios, ofertas estas que viriam “de todo homem cujo coração se mover voluntariamente” (v.2). O Senhor queria que o povo voluntariamente se engajasse na tarefa de construção do Tabernáculo, o qual seria um santuário, um lugar santo, separado, para Deus habitasse no meio deles e que deveria ser feito não de qualquer jeito, mas da forma como Ele ordenou (vv. 9-10).
            A realidade do Novo Testamento lança ainda mais luz sobre esta questão, mostrando que, pelo sacrifício de Cristo, todos aqueles que foram remidos pelo sangue derramado no Calvário, foram feitos filhos de Deus, recebendo o selo do Espírito Santo, o qual passa a habitar pessoalmente em nós, dentro de nós e quer se mover através de nós para manifestar toda a sua glória, verdade e graça, de modo que somos chamados de “templos do Espírito Santo”, “tabernáculos do Deus vivo” (1 Co 3:16; 1 Co 6:19; 2 Co 6:16).
            E como “tabernáculos do Deus vivo”, tal como os israelitas foram responsáveis pela construção do tabernáculo e de seus utensílios, somos responsáveis, em cooperação com o Espírito Santo, pela construção e renovação do nosso homem interior, pelo embelezamento do nosso caráter para cumprir os propósitos que Deus estabeleceu para nós desde antes da fundação do mundo.
            O tabernáculo de Deus exigiu dos israelitas a utilização de ouro, prata, pedras preciosas, materiais finos, corantes, os quais eram caros devido ao seu custoso processo de extração, enfim, exigiu o que se tinha de mais sólido e precioso para a época em termos de construção e embelezamento e, da mesma forma, exigirá de nós a melhor das nossas motivações e disposições para agradar ao Senhor e, para isso, demandará de nós a fé e a obediência para fazer conforme tudo o que Ele nos mostrar à luz de sua Palavra, a qual se constitui no material mais precioso para a construção de nosso tabernáculo, aliada a oração, ao arrependimento e a prática da presença de Deus através dos meios de graça.
            A arca da aliança, nos tempos do Antigo testamento, era portadora da presença direta de Deus, coberta de ouro puro; ela tinha quatro argolas de ouro em cada uma de suas extremidades e entre as mesmas passavam os varais que eram utilizados para suspender e transportar a arca sem que a mesma fosse tocada. Tocar na arca era tratar o trono de Deus como algo comum e, portanto, desrespeitava a sua santidade (2 Sm 6:6) (cf. Bíblia de Estudo de Genebra. São Paulo: Cultura Cristã, 2009, p. 124). De forma semelhante, se realmente queremos crescer espiritualmente e mortificar o pecado, renovando a nossa mente, não podemos levar a vida cristã de qualquer jeito, tratando a santidade de Deus e sua graça como algo barato ou sem valor, mas devemos desenvolver a nossa salvação com temor e tremor, mantendo um coração grato e disposto e perseverante a aprender do Senhor e a se submeter ao seu tratamento, ainda que duro.
           
IV) A reconstrução do ser e das faculdades mentais na união com o Espírito Santo, bem como a importância da doutrina da regeneração

            Outro texto de grande valia para o tema em discussão é o constante de Efésios 1:15-23:

Por isso, ouvindo eu também a fé que entre vós há no Senhor Jesus, e o vosso amor para com todos os santos, não cesso de dar graças a Deus por vós, lembrando-me de vós nas minhas orações: Para que o Deus de nosso Senhor Jesus Cristo, o Pai da glória, vos dê em seu conhecimento o espírito de sabedoria e de revelação; tendo iluminados os olhos do vosso entendimento, para que saibais qual seja a esperança da sua vocação, e quais as riquezas da glória da sua herança nos santos; e qual a sobreexcelente grandeza do seu poder sobre nós, os que cremos, segundo a operação da força do seu poder, que manifestou em Cristo, ressuscitando-o dentre os mortos, e pondo-o à sua direita nos céus. Acima de todo o principado, e poder, e potestade, e domínio, e de todo o nome que se nomeia, não só neste século, mas também no vindouro; e sujeitou todas as coisas a seus pés, e sobre todas as coisas o constituiu como cabeça da igreja, que é o seu corpo, a plenitude daquele que cumpre tudo em todos (versão Almeida Corrigida Fiel, grifo nosso).

Neste trecho das Escrituras, pode-se perceber que o Apóstolo Paulo orava para que Deus os efésios fossem “despertos”, “iluminados” em suas várias faculdades mentais, a fim de que pudessem compreender não só no nível intelectual, mas também no mais profundo de seu coração as grandes realidades do Evangelho, o poder de Deus e de Cristo ressurreto e a profundidade do nosso chamado, da nossa união com Cristo e da nossa herança como cristãos (de forma semelhante em FERRELL, Ana Mendez. A Iniquidade. Rio de Janeiro: Propósito eterno, 2009, p. 27-28).
A expressão “olhos do vosso entendimento”, constante do texto citado, é traduzida em algumas versões da Bíblia como “olhos do vosso coração”, contudo, a palavra grega utilizada aqui para “entendimento”, “coração” é “dianoia” e esta tem uma profundidade de significado mais amplo, denotando pensamento profundo, a faculdade da mente ou sua disposição, bem como, por implicação, o seu exercício: imaginação, mente, entendimento; o intelecto, a percepção; o modo de pensar e de sentir; os sentimentos, afeições e disposição mental (cf. Bíblia de Estudo Palavras-Chave. Rio de Janeiro: CPAD, 2011, p. 2144).
Diante do texto em foco, pode-se dizer que Deus deseja renovar todo o nosso ser, em toda a amplitude de nossas faculdades mentais, não somente para nos salvar, mas também para que conheçamos a profundidade da nossa vocação, da nossa identidade como filhos de Deus, como servos, bem como de noiva de Cristo e, por via de consequência, para que cooperemos com os seus eternos propósitos na redenção dos seus eleitos e na manifestação de toda a Sua graça e glória, pelo que se depreende que, para o genuíno cristianismo, não basta a “mera adesão intelectual” das pessoas às verdades de Deus, isto é, não basta que as pessoas apenas identifiquem as verdades do cristianismo como tais, mas é necessário um “novo nascimento”, “um nascimento do Espírito Santo”, um operar do Espírito Santo no íntimo do ser humano, ressuscitando-o da morte espiritual para uma vida nova, um espírito novo recriado, já que as verdades espirituais só se discernem espiritualmente (1 Co 2:14).
Esta ordem de ideias, com certeza, choca-se com a teologia enferma dos nossos dias. Muitos dizem: “fulano, aceitou Jesus” e depois se “desviou”; será que esse fulano algum dia se converteu verdadeiramente? A Bíblia em momento algum usa esta expressão “aceitar Jesus”; muito pelo contrário, o novo testamento é enfático na doutrina da regeneração, do novo nascimento, sendo que o próprio senhor Jesus diz em João 3:3: “Em verdade, em verdade te digo que, se alguém não nascer de novo, não pode ver o reino de Deus” (Versão Almeida Revista e Atualizada – ARA); não existe em parte alguma das Escrituras, a instrução para que sejamos “convidados” a tomar a decisão para ter Jesus como nosso salvador e deixar somente para depois a decisão de “torná-lo” nosso Senhor. Isto é uma aberração dos dias de hoje, forjada por um sistema que muitas vezes só trabalha em favor do crescimento numérico da igreja, relativizando as exigências do Evangelho para acomodar nos bancos das congregações uma “multidão” de pessoas completamente descompromissadas com a vida de Cristo, seja com fins de arrecadar uma “hemorragia de dinheiro”, seja para sustentar o orgulho de ter uma “multidão” sob o comando de uma liderança. Como é que se pode dizer que uma pessoa que não tem a firme convicção do senhorio de Jesus em sua vida realmente nasceu de novo e é participante das realidades espirituais? Como alguém assim pode dizer que tem a mente de Cristo? Você já parou para pensar a quem este tipo de teologia serve nos dias de hoje?
Observe-se o que dizem as Escrituras em 1 Coríntios 2:

1 Eu, irmãos, quando fui ter convosco, anunciando-vos o testemunho de Deus, não o fiz com ostentação de linguagem ou de sabedoria; 2 Porque decidi nada saber entre vós, senão a Jesus Cristo e este crucificado; 3 E foi em fraqueza, temor e grande tremor que eu estive entre vós; 4 A minha palavra e a minha pregação não consistiram em linguagem persuasiva de sabedoria, mas em demonstração do Espírito e de poder, 5 para que a vossa fé não se apoiasse em sabedoria humana, e sim no poder de Deus; 6 Entretanto, expomos sabedoria entre os experimentados; não, porém, a sabedoria deste século, nem a dos poderosos desta época, que se reduzem a nada; 7 mas falamos a sabedoria de Deus em mistério, outrora oculta, a qual Deus preordenou desde a eternidade para a nossa glória; 8 sabedoria essa que nenhum dos poderosos deste século conheceu; porque, se a tivessem conhecido, jamais teriam crucificado o Senhor da glória; 9 mas, como está escrito: Nem olhos viram, nem ouvidos ouviram, nem jamais penetrou em coração humano o que Deus tem preparado para aqueles que o amam; 10 Mas Deus no-lo revelou pelo Espírito; porque o Espírito a todas as coisas perscruta, até mesmo as profundezas de Deus; 11 Porque qual dos homens sabe as coisas do homem, senão o seu próprio espírito, que nele está? Assim, também as coisas de Deus, ninguém as conhece, senão o Espírito de Deus. 12 Ora, nós não temos recebido o espírito do mundo, e sim o Espírito que vem de Deus, para que conheçamos o que por Deus nos foi dado gratuitamente; 13 Disto também falamos, não em palavras ensinadas pela sabedoria humana, mas ensinadas pelo Espírito, conferindo coisas espirituais com espirituais; 14 Ora, o homem natural não aceita as coisas do Espírito de Deus, porque lhe são loucura; e não pode entendê-las, porque elas se discernem espiritualmente; 15 Porém o homem espiritual julga todas as coisas, mas ele mesmo não é julgado por ninguém; 16 Pois quem conheceu a mente do Senhor, que o possa instruir? Nós, porém, temos a mente de Cristo (1 Coríntios 2:1-15 – ARA, grifos nossos).

O texto acima é bem elucidativo a respeito da conexão entre o novo nascimento e a renovação da mente, pelo que se pode depreender que o homem natural, ou seja, o homem não nascido do Espírito Santo de Deus não pode discernir as verdades espirituais, mas somente aqueles que foram nascidos de Deus é que podem ser participantes das realidades espirituais, da renovação da mente pela lavagem regeneradora e santificadora da atuação do Espírito Santo em nós e pela consequente absorção e prática da sabedoria de Deus, de modo que venhamos a ter a mente de Cristo através do ensino e testemunho interno e eficaz que só o Espírito de Deus pode efetuar.

V) O que significa ter a mente de Cristo? A restauração do nosso ser, o fruto do Espírito Santo e o surgimento da verdadeira criatividade
           
            O texto de 1 Coríntios 2:15 diz que recebemos do Espírito Santo a “mente de Cristo”, sendo que a primeira leitura que podemos fazer do significado de ter a mente de Cristo é o desenvolvimento do fruto do Espírito através do relacionamento com Deus, sendo, portanto, transformados à sua imagem e semelhança, conforme se depreende de Gálatas 5:22-25:

22 Mas o fruto do Espírito é: amor, alegria, paz, longanimidade, benignidade, bondade, fidelidade, 23 mansidão, domínio próprio. Contra estas coisas não há lei. 24 E os que são de Cristo Jesus crucificaram a carne, com as suas paixões e concupiscências. 25 Se vivemos no Espírito, andemos também no Espírito (ARA).

Outro aspecto de ter a mente de Cristo é o constante em Isaías 11:1-5

1 Do tronco de Jessé sairá um rebento, e das suas raízes, um renovo. 2 Repousará sobre ele o Espírito do SENHOR, o Espírito de sabedoria e de entendimento, o Espírito de conselho e de fortaleza, o Espírito de conhecimento e de temor do SENHOR. 3 Deleitar-se-á no temor do SENHOR; não julgará segundo a vista dos seus olhos, nem repreenderá segundo o ouvir dos seus ouvidos; 4 mas julgará com justiça os pobres e decidirá com equidade a favor dos mansos da terra; ferirá a terra com a vara de sua boca e com o sopro dos seus lábios matará o perverso. 5 A justiça será o cinto dos seus lombos, e a fidelidade, o cinto dos seus rins (ARA).
  
Este é um texto profético que fala a respeito de Jesus e das qualidades espirituais de sua mente, as quais podem ser “transpostas” para nós no relacionamento com o Espírito Santo dentro do nosso processo de santificação e intimidade com Deus, recebendo dEle, pois, sabedoria, entendimento, fortaleza, conselho, temor, bem como uma capacitação do Espírito para discernir além dos nossos olhos e ouvidos naturais (ver 1 Co 12 acerca dos dons espirituais).
A Bíblia é repleta de exemplos deste tipo de “transposição”, tal como Bezalel e os construtores do tabernáculo, homens que o Senhor encheu com seu Espírito, dando-lhes inteligência e conhecimento para trabalhar com toda a espécie de técnica de construção, costura, lapidação, etc. (Ex 35:31-35); José a quem o Senhor deu o entendimento dos sonhos e sabedoria para ser governador do Egito (Gn 40:8, 41:16); Daniel, a quem o Senhor encheu com um espírito excelente, conhecimento e inteligência, interpretação de sonhos, declaração de enigmas e solução de casos difíceis (Dn 1:17, 5:12); Zorobabel (Zc 4:6-10); Salomão e a sabedoria sobrenatural que o Espírito de Deus concedeu- lhe (1 Rs 3); Estêvão (At 6); os apóstolos (At 2); mostrando a verdade que Deus sempre capacita com o seu Espírito aqueles a quem chama com o propósito de edificar os seus santos, isto é, o corpo de Cristo, a sua igreja, a fim de que seus eleitos possam conhecer o Senhor cada vez mais, sendo transformados, conforme já dito, à imagem e semelhança de Cristo.
Na nossa união com Deus através do Espírito Santo, abre-se uma nova possibilidade de bem, mas também se abre uma nova possibilidade de mal, conforme os dizeres de C. S. Lewis:

Porque o sobrenatural, entrando em uma alma humana, abre a ela novas possibilidades ambas de bem ou de mal. Deste ponto a estrada se bifurca: um caminho para a santidade, amor, humildade, o outro para o orgulho espiritual, justiça própria, zelo perseguidor. E não há caminho de volta para as meras e monótonas virtudes e vícios da alma não desperta. Se o chamado divino não nos fizer melhores, far-nos-á muito piores. De todos os homens maus os maus homens religiosos são os piores (Reflections on Psalms. New York: Harcourt, 1986, p. 31-32, tradução minha do inglês).

O determinante será, portanto, a nossa vontade de cooperar com o Espírito Santo nesse processo de renovação do homem interior. Obedecer ou não obedecer é uma escolha; a nossa união ou separação de Deus é um ato de vontade e é esta vontade que determina se a nossa personalidade é feita uma só com a “Realidade Última e Definitiva”, que é Deus. Quando o homem é obediente, quando ele deseja unir-se com Deus, é que ele se torna pessoa, não mais vivendo a realidade do inferno de um “eu” fragmentado, partido, falso e usurpador, mas passando a viver uma personalidade integrada, aperfeiçoada através da obediência, erigida pela sujeição de uma vida disposta a ser moldada como um vaso nas mãos do oleiro, já que somos como uma obra de arte de Deus. Sendo tabernáculos de Deus e apenas pela virtude de ser habitado por Ele, nós somos completamente livres para colaborar com o Espírito Santo, tornando a nossa vontade uma com a vontade de Deus pela obediência e, a partir daí, é que somos verdadeiramente criativos e desenvolvemos o verdadeiro atributo da criatividade que edifica o Reino de Deus como um todo e os santos individualmente (cf. PAYNE, Leanne. Real Presence: The glory of Christ with us and within us. Grand Rapids: Baker Books, 1995, p. 77-79).
Como tabernáculos do Espírito Santo, abre-se para nós a possibilidade de buscar a fonte da nossa identidade unicamente em Deus e, na medida em que esta busca se torna uma realidade crescente em nós, a personalidade integrada e liberta vai sendo edificada, passando a não mais se fundamentar em um papel (pai, mãe, esposa, marido), em uma profissão ou carreira (médico, pastor, advogado, engenheiro), em uma classe ou status social e/ou econômico (homem, mulher, negro, branco, rico, classe média, pobre), nos talentos pessoais (habilidade de escrever, cantar, pregar, administrar), não mais sendo formatada e determinada pelos medos de falhar ou pelo que os outros pensam dela, já que a justificação da personalidade encontra-se em Deus apenas e, a partir daí, é que podemos ser libertos da superimposição dos pecados, dos enganos, dos pontos fracos de outras pessoas e daqueles de seu próprio passado, das rejeições que a alma sofreu no passado e sofre no presente, passando a trilhar gradualmente e de forma crescente o caminho de liberdade para amar, inclusive os nossos inimigos.
Na medida em que a nossa personalidade encontra sua fundamentação, identidade e senso de valor unicamente em Deus, os medos, as pressões externas, a indevida dominação por outros através de manipulação e controle vão perdendo seu poder, não mais formatando e modelando a sua vida interior, nem mesmo as circunstâncias da vida externa, já que o nosso senso de segurança está em nossa vida interior, em Deus, pelo que somos capacitados pelo Espírito Santo para confrontar e lidar com estas coisas e não mais ser modelados por elas (cf. PAYNE, Leanne, Op. cit., p. 79).
Ouvir a Deus não é somente escutar, mas também obedecer e, neste processo de obediência com o comprometimento por inteiro da nossa disposição mental, conforme já dito acima, a nossa vontade se torna uma com a dEle, o Senhor renova o homem interior em sua dimensão intelectual, emocional, sensorial e intuitiva, sarando a alma e todo o nosso ser de suas mazelas, recebendo o fluir do Seu amor, graça e poder para sermos verdadeiramente criativos e cooperar com o Espírito Santo na redenção do homem e das coisas criadas, retirando o cheiro e a realidade da morte deste mundo que jaz nas mãos do maligno.
Deus nos dotou com a capacidade do livre arbítrio e tal faculdade possibilitou a entrada do mal e do pecado na raça humana, contudo, o livre arbítrio é a única coisa que nos possibilita o amor, o qual não é um sentimento, mas uma questão de vontade, a qual precisa ser convertida ao Senhor diariamente. Decidir entrar em um relacionamento com Deus é escolher o amor que flui dEle e descobrir-se filho de Deus, amado e redimido, passando pelo processo doloroso de provações a fim de ser aperfeiçoado e retirada a “carcaça” do “eu” orgulhoso, perverso e animal que tenta nos dominar (cf. PAYNE, Leanne, Op. cit., p. 79-85).
Amado irmão, como você tem usado o seu livre arbítrio para renovar a sua mente?            
     
VI) Derrubando as estruturas antigas para construir o novo: uma exposição acerca do conceito de “fortaleza espiritual”

            Apesar da linda realidade da redenção e transformação acima mencionada, é só olharmos ao nosso redor para perceber que a cristandade que nos cerca está muito aquém deste padrão. Nunca se viu uma geração tão decaída e com o caráter tão distorcido como nos dias de hoje, a ponto de constatarmos a realidade exposta em Mateus 24:12: “E, por se multiplicar a iniquidade, o amor se esfriará de quase todos” (ARA).
            Por que, apesar de termos herdado a vida que vem do Espírito Santo, não temos a mente de Cristo?
            É porque não renovamos a nossa mente, não deixamos de tomar a forma do mundo, enfim, porque não nos dispusemos a destruir o que chamo de “fortalezas espirituais” ou “fortalezas da mente”, que nos mantem cativos aos padrões da iniquidade e do pecado.  
Em virtude da queda do homem no Éden, o pecado entrou no mundo e corrompeu todo o ser do homem e seu coração (Jr 17), danificando as suas emoções e deformando a sua mente com todo tipo de padrão distorcido e injusto de comportamento em relação ao padrão que Deus estabeleceu em sua Palavra, tais padrões distorcidos de mente são o que se chama de “fortalezas espirituais” ou “fortalezas da mente”, isto é, padrões de desobediência a Palavra de Deus, padrões de orgulho (altivez), que levam o homem a levar a sua vida independente de Deus (justiça própria e autossuficiência), bem como os sofismas, os quais são padrões de engano e mentiras espirituais que estão enraizados na mente do homem e determinam a sua ação moral, conforme se depreende de 2 Coríntios 10:4-6:

Porque as armas da nossa milícia não são carnais, e sim poderosas em Deus, para destruir fortalezas, anulando nós sofismas e toda a altivez que se levante contra o conhecimento de Deus, e levando cativo todo pensamento à obediência de Cristo, e estando prontos para punir toda desobediência, uma vez completa a vossa submissão (ARA) (grifo nosso).
           
As “fortalezas espirituais” ou “fortalezas da mente” são padrões enraizados em nossas mentes e que se opõem ao verdadeiro conhecimento de Deus; são padrões que adquirimos convivendo com os “três gigantes” mais difíceis de ser derrotados, quais sejam o diabo, o mundo e a carne, o que bem se pode depreender da leitura de Tiago 3:13-15:

Quem dentre vós é sábio e entendido? Mostre pelo seu bom procedimento as suas obras em mansidão de sabedoria. Mas, se tendes amargo ciúme e sentimento faccioso em vosso coração, não vos glorieis, nem mintais contra a verdade. Essa não é a sabedoria que vem do alto, mas é terrena, animal e diabólica (ARC – grifo nosso).

            Leitor, não se engane! Todos os nossos comportamentos que não condizem com a verdade da Palavra de Deus são frutos do cultivo de mentiras forjadas contra a Verdade; são aquelas mentiras que recebemos como “verdade” e que formam uma sabedoria que é terrena, animal e demoníaca, até mesmo porque, conforme as Escrituras nos esclarecem, o diabo é o pai da mentira:

Vós tendes por pai o Diabo, e quereis satisfazer os desejos de vosso pai; ele é homicida desde o princípio, e nunca se firmou na verdade, porque nele não há verdade; quando ele profere mentira, fala do que lhe é próprio; porque é mentiroso, e pai da mentira (Jo 8:44 - ARC).

            Consoante às palavras proferidas pelo próprio Jesus, nosso inimigo é homicida desde o início e ele usa a mentira como arma para roubar, matar e destruir tudo aquilo que temos de melhor, mantendo a nossa mente cativa a todo tipo de engano do pecado com a finalidade de nos desfigurar e eliminar, embrutecendo o coração do homem de tal forma que ele perca a sua condição de ser criado à imagem e semelhança de Deus.
Tendo um adversário homicida como este, renovar a mente e lutar a batalha da fé, portanto, não é uma mera opção de nossa ou uma sugestão que podemos seguir, mas uma absoluta necessidade, sob pena de, se assim não procedermos, a derrota ser certa e a nossa ruína inevitável. Neste sentido, trago à colação as palavras da irmã Basilea Schlink:

Tenho um inimigo que está sempre nos meus calcanhares, pronto a atacar-me e vencer-me. Ele quer ter-me como presa sua. Se o inimigo não está apenas me ameaçando mas já começou a lutar, estarei em perdido, se não me armar e entrar no campo de batalha. Daí que, enfrentar a batalha da fé ou deixar de fazê-lo, não é questão deixada ao nosso capricho, e, sim, de absoluta necessidade. De outro modo, estamos irremediavelmente perdidos. Não podemos adotar uma atitude passiva e não fazer nada, a menos que, naturalmente, não nos incomodemos de ser presa do inimigo (Nunca mais serás o mesmo. 4 ed. Venda Nova: Betânia, 1988, p. 12). 

            Dentro desta ordem de ideias, uma parte fundamental do nosso processo de renovação da mente é identificar as mentiras, os falsos conceitos que dizemos para nós mesmos em nosso diálogo íntimo, identificar, portanto, as “fortalezas da mente”, renunciá-las e substituí-las pelas verdades da Palavra de Deus, aplicando-as em nossas vidas com novas atitudes baseadas nos conceitos verdadeiros, uma vez que “modifiquem-se os fatos em que o homem crê, e assim serão modificados seus sentimentos e conduta” (cf. BACKUS, William; CHAPIAN, Marie. Fale a Verdade Consigo Mesmo. 2 ed. Venda Nova: Betânia, 2000, p. 28).
            Por exemplo, uma pessoa que se autodeprecia compulsivamente (complexo de inferioridade) tende a ter sentimentos de incapacidade, desvalor em relação a si mesma, solidão, tristeza profunda, isolamento, magoa-se com facilidade, interpreta as críticas como uma rejeição a si, etc.; tais sentimentos negativos não serão curados a menos que a pessoa, além de restaurar seus relacionamentos partidos com a liberação de perdão, disponha-se a identificar os falsos conceitos que recebeu como “verdade” em seu coração e que geram a auto depreciação, rejeitando-os e substituindo-os pela verdade da Palavra de Deus com atitudes concretas, uma vez que somente quando aplicamos a verdade em fé, em operação com o poder da experiência é que verdadeiramente poderemos ser transformados pelo Espírito Santo.
            Em 2 Coríntios 10:5, acima transcrito, a versão Almeida Revista e Atualizada da Bíblia usa a expressão “sofisma” como um tipo de fortaleza espiritual a ser destruída. O dicionário Michaelis define sofisma nos seguintes termos: “(do grego sóphisma) 1 (da Lógica) Raciocínio capcioso, feito com intenção de enganar. 2 Argumento ou raciocínio falso, com alguma aparência de verdade. 3 (popular) Dolo, engano, logro”. É justamente com os sofismas que o inimigo contamina a mente das pessoas, comunicando mentiras que tem o poder de deixar a mente das pessoas presas, cativas aos padrões do pecado e da iniquidade. Os sofismas são aquelas mentiras que recebemos como “verdade”, aquelas mentiras forjadas com a intenção de enganar e só conseguem seu intento porque tem a aparência de verdade; se os sofismas não tivessem a aparência de verdade, não teriam o poder de enganar e uma mente atolada de sofismas se orientará por eles, reproduzindo comportamentos e emoções desviadas da verdade, iníquas, pecaminosas e doentes.
            Um resultado do engano dos sofismas é uma mente presa aos padrões da iniquidade, ao orgulho, à altivez, à justiça própria, à falta de perdão e aos sentimentos negativos que retiram da alma a alegria de viver. Aliás, a face macabra dos sofismas é o terrível ciclo vicioso que causam: eles contaminam a mente com mentiras, causando comportamentos e emoções deformadas, os quais produzem essa aparência de verdade; por exemplo, uma pessoa que se sente rejeitada poderá pensar: “eu sou rejeitado, não valho nada, não sirvo para nada”; uma pessoa viciada em drogas, álcool, sexo poderá dizer para si mesma: “eu não posso, não consigo viver sem isso”; uma pessoa que não tem uma boa autoestima e procura seu senso de valor em outra pessoa poderá dizer: “eu não posso, não consigo viver sem fulano”, alimentando um ciclo de dependência emocional e de falta de domínio próprio; uma pessoa que fracassou várias vezes poderá dizer: “eu sou um fracasso, nada do que faço dá certo” e viver atormentada pelo medo de fracassar e, frequentemente, não obterá êxito nas coisas que fizer e terá medo de tentar coisas novas porque se sente incapaz de concretizá-las; uma pessoa que foi traída em um relacionamento significativo poderá nutrir em sua mente: “não posso, não consigo confiar em ninguém, todos são iguais e igualmente me trairão e me usarão”, realimentando a amargura e a incredulidade em relação aos relacionamentos, entre outros. O que se tem de comum em relação aos falsos conceitos acima descritos? Eles mantêm a pessoa em cárcere emocional, travando a sua mente e servindo de base para os seus relacionamentos, os quais com certeza não serão saudáveis, não só em relação aos outros, como também em relação a si mesma. Não é a toa que Os Guinness diz: “O estoque do diabo no mercado é um mundo de meias verdades e meias mentiras onde a meia mentira mascara-se como a completa verdade” (apud SEAMANDS, David A. Putting away childish things. In: Healing your heart of painful emotions. New York: Inspirational Press, 1993, p. 188).
            Diante do exposto, um dos passos fundamentais do nosso crescimento espiritual é justamente derrubar essas mentiras, substituindo-as pelas verdades contidas na Palavra de Deus a nosso respeito. Não poderemos construir algo novo em nossas vidas com os velhos alicerces e as paredes feitas com os tijolos e o reboco do inferno intactos e, se não os destruirmos, certamente eles nos destruirão ou, então, manterão a nossa vida em um patamar muito aquém daquilo que Deus deseja para nós, que é uma vida abundante.    
           
VII) A fortaleza espiritual do engano de identidade e o processo de tentação: o exemplo de Eva e a tentação de Jesus no deserto, bem como a análise do sofisma do ativismo religioso  

            A grande verdade a nosso respeito é que fomos criados à imagem e semelhança de Deus (Gn 1:27) com a finalidade de conhecê-lo; criados perfeitos e plenos em Deus para viver em uma união íntima com Ele, extraindo dEle nossa fonte de identidade e destino.
            Entretanto, no Éden, a crise de identidade começou com a queda do homem. Na tentação de Eva, o diabo (a serpente) introduziu o engano da identidade:

Então, a serpente disse à mulher: É certo que não morrereis. Porque Deus sabe que no dia em que dele comerdes se vos abrirão os olhos e, como Deus, sereis conhecedores do bem e do mal (Gênesis 3:4-5 – ARA, grifos nossos).
           
            A serpente disse a Eva que faltava algo nela, o conhecimento do bem e do mal, e que, de posse de tal conhecimento, ela seria como Deus, isto é, a serpente estava insinuando que Eva não era igual a Deus e que ela deveria fazer algo a respeito para reparar, para superar sua “incompletude” e “imperfeição”. O inimigo teve de mexer na identidade de Eva para fazê-la pecar, já que ela foi criada pura, santa e sem pecado, com um coração disposto somente para obedecer a Deus e fazer o bem e, se o pecado se apresentasse como tal, ela simplesmente recusaria a cometê-lo. Contudo, Eva recebeu em seu coração o engano de identidade, acreditou que era “imperfeita”, “incompleta”, acreditou que não era como Deus, acreditou que lhe faltava algo e que precisava fazer algo a respeito.
            Por que o que serpente falou a Eva era mentira ou uma “meia verdade”, se você preferir?
            Porque, conforme já referido acima, Adão e Eva eram como Deus, criados à sua imagem e semelhança e, como Deus, eles eram santos, puros, sem pecado; perfeitos em suas faculdades mentais; plenos em seu aspecto relacional com Deus, consigo mesmos, com o próximo e com o meio ambiente em que viviam, com a capacidade de conhecer a si mesmos em seu valor como pessoa, o qual derivava de Deus, sem necessidade de buscar fora de si algo para servir de significante de suas identidades, podendo, sem qualquer vergonha, relacionar-se com o próximo em estado de “nudez”, transparência, dando-se a conhecer exatamente como eram, sem barreiras, sem máscaras, expressando seu ser desembaraçadamente, sem medo de qualquer rejeição; semelhantemente a Deus, exerciam domínio sobre as coisas criadas, intervindo no meio ambiente em que viviam, interagindo com o mesmo de forma equilibrada, lançando mão do exercício de sua faculdade criativa (criatividade) e, assim, transformando a natureza, de modo a dela usufruir para seu bem-estar.
            Se há um pecado que o crente tem de se preocupar é o da incredulidade; esta trouxe graves consequências, as quais nós colhemos como fruto maldito até os dias de hoje e que pode nos impedir de entrar no descanso com Deus neste mundo e no porvir.
            De semelhante modo, o inimigo agiu com Jesus durante a tentação no deserto, conforme vemos em Mateus 4:1-11:

1 A seguir, foi Jesus levado pelo Espírito ao deserto, para ser tentado pelo diabo. 2 E, depois de jejuar quarenta dias e quarenta noites, teve fome. 3 Então, o tentador, aproximando-se, lhe disse: Se és Filho de Deus, manda que estas pedras se transformem em pães. 4 Jesus, porém, respondeu: Está escrito: Não só de pão viverá o homem, mas de toda palavra que procede da boca de Deus. 5 Então, o diabo o levou à Cidade Santa, colocou-o sobre o pináculo do templo 6 e lhe disse: Se és Filho de Deus, atira-te abaixo, porque está escrito: Aos seus anjos ordenará a teu respeito que te guardem; e: Eles te susterão nas suas mãos, para não tropeçares nalguma pedra. 7 Respondeu-lhe Jesus: Também está escrito: Não tentarás o Senhor, teu Deus. 8 Levou-o ainda o diabo a um monte muito alto, mostrou-lhe todos os reinos do mundo e a glória deles 9 e lhe disse: Tudo isto te darei se, prostrado, me adorares. 10 Então, Jesus lhe ordenou: Retira-te, Satanás, porque está escrito: Ao Senhor, teu Deus, adorarás, e só a ele darás culto. 11 Com isto, o deixou o diabo, e eis que vieram anjos e o serviram (ARA, grifos nossos).
           
            O inimigo lançou um engano de identidade sobre Jesus com a expressão “se és filho de Deus”, tentando forçá-lo a fazer algo a respeito para provar tal condição e, assim, fazê-lo pecar com “a concupiscência da carne, a concupiscência dos olhos e a soberba da vida” (1 Jo 2:16 – ARA), ou, como diz a Bíblia na Linguagem de Hoje, com “os maus desejos da natureza humana, a vontade de ter o que agrada aos olhos e o orgulho pelas coisas da vida”.
            Da mesma forma como o diabo tentou Eva e Jesus, ele nos tenta, introduzindo o engano de identidade, dizendo: “falta algo em você e você precisa fazer algo a respeito para suprir essa necessidade” (obs: essas ideias a respeito da tentação de Eva e Jesus e da dinâmica da tentação, recebi do irmão Willy Torresin em uma de suas pregações na Conferência SER, realizada em Belém/PA, nos dias 28 de junho a 01 de julho de 2012, pelo Ministério SER – Sexualidade e Restauração).
Aliás, esta é a essência do ativismo religioso, a de que nos falta a aceitação e a aprovação de Deus e que precisamos fazer obras a fim de que Ele nos conceda a benção; assim, satanás perverte nosso relacionamento com Deus em um sistema de barganha. Um relacionamento que deveria se basear na pura graça, no favor imerecido de Deus, passa a se desenvolver em um nível em que oferecemos a Deus “obras” para nos auto justificar e auto santificar, o que, no fundo, não passa de uma religião falsa de méritos, de legalismo, de uma tirania de deveres e obrigações e que, ao invés de oferecer uma identidade dotada de estabilidade e baseada no imutável do amor de Deus, que nos adotou como filhos seus, fundamenta-se no desempenho e na variabilidade das circunstâncias, concedendo-nos uma segurança de identidade vazia, já que esta dependeria do êxito pessoal, o qual nem sempre é atingido, gerando um ciclo crescente de sentimentos de culpa, insegurança, inadequação, frustração e mantendo a pessoa cativa em padrões de aceitação inatingíveis. A pessoa, portanto, não se torna liberada para ser filho de Deus e “ser humano”, mas se encontra cativa como um prisioneiro para se reduzir tão somente a um “fazer humano”. O inimigo faz as seguintes insinuações, pervertendo as disciplinas cristãs mais comuns da vida cristã e utilizando-se até da mecânica do sistema religioso: “olha, você não leu a Bíblia o suficiente, você não orou o suficiente, não foi para aquele evento da igreja, não participou de vigílias, não está jejuando o suficiente, você precisa fazer algo a respeito, empenhar-se mais para que seja aceito diante de Deus”, “você não participa de nenhum ministério, não é líder de célula, você não tem discípulos o suficiente, você não é frutífero e a árvore que não dá fruto será lançada fora e Deus cobrará o sangue dos perdidos da sua cabeça, você precisa fazer algo a respeito para ser um obreiro aprovado diante de Deus”.  
            Onde está o sofisma do inimigo no ativismo religioso?
            Primeiramente, porque somos salvos pela graça mediante a fé (Ef 2:8) e não pelas obras das nossas mãos (Rm 11:6), até mesmo porque a nossa justiça aos olhos de Deus é como trapo de imundície (Is 64:6). As obras que fazemos têm de ser fruto, evidência de uma fé salvadora; são consequência da fé e da salvação em Cristo e não a sua causa; evidenciam de forma externa a graça recebida internamente no coração do homem, a transformação do nosso caráter à semelhança de Cristo.
Se a nossa identidade depender das obras que realizamos, no dia em que não pudermos fazê-las, sentir-nos-emos as piores criaturas da face da Terra diante de Deus; a prisão das obras como fonte de identidade é como uma boca que nunca para de comer, sempre faminta e insaciável e que, em casos extremos, leva-nos ao esgotamento espiritual, físico e emocional, até mesmo porque, por mais obras que façamos, nunca resolveremos o problema do pecado, seja o nosso, seja o do nosso irmão em Cristo, seja o pecado dos perdidos.
Obras humanas não se constituem na solução para o pecado; a questão do pecado do mundo não é um problema nosso, não está ao nosso alcance resolvê-lo, mas é uma questão que Deus, de forma soberana, administra por sua graça, aceitando os méritos da obra que Cristo realizou morrendo na cruz, imputando a justiça que vem dEle em nós os que cremos; Deus nos usa tão somente como canais de sua graça para alcançar os perdidos, mas nós nunca fomos e nunca seremos a solução da morte espiritual deles; os perdidos que habitarão o inferno pela eternidade não estarão lá porque não fizemos o suficiente para os alcançar, mas por causa do pecado; a única solução para o pecado sempre foi e sempre será o sangue do cordeiro morto antes da fundação do mundo (Ap 13:8). Deus é soberano e nada, nem ninguém, frustrará qualquer um de seus desígnios e propósitos; tudo o que Ele determinou, assim se cumprirá e nenhum de seus eleitos será arrebatado de sua mão.
O nosso papel a cada dia é desfrutar de um relacionamento íntimo e sincero com nosso Pai Celestial, desfrutando de uma identidade segura que provém de nossa condição de filhos, rogando para que Ele nos mostre o que quer de nós em termos de serviço; Deus nos criou com um propósito e nos reservou para um ministério para que manifestemos a sua multiforme graça nesse mundo. Deus, sem dúvida, quer nos usar e devemos orar para que Ele nos conduza ao centro da vontade dEle e vigiar para que as obras que fazemos não calem a nossa adoração e não nos roubem o tempo de refrigério, crescimento e cura na presença do Pai.
Outro engano do ativismo religioso é a confusão “infantil” entre aceitação e aprovação. O inimigo distorce os dois conceitos como se fosse um só, causando extrema confusão na mente das pessoas. A aceitação diz respeito à nossa identidade, à nossa condição diante de Deus e, como já exposto acima, esta é baseada na graça mediante a fé, a qual nos torna filhos de Deus, não se referindo, por via de consequência, ao nosso comportamento e às nossas obras, conforme encontramos em João 1:12-13: “Mas, a todos quantos o receberam, deu-lhes o poder de serem feitos filhos de Deus, a saber, aos que crêem no seu nome; os quais não nasceram do sangue, nem da vontade da carne, nem da vontade do homem, mas de Deus” (ARA). Por outro lado, aprovação diz respeito ao nosso comportamento e às nossas obras e, neste nível, como filhos, Deus trata o nosso caráter a fim de seja gerado em nós a imagem e semelhança de Cristo; somos submetidos a uma série de provações para que, nelas aprovados, possamos desenvolver o fruto do Espírito e a perseverança como santos, cooperando com Deus naquilo que Ele estabeleceu para nós como propósito de vida e ministério e sendo despenseiros, canais de sua multiforme graça (1 Pe 4:10).
Podemos até ter sido reprovados em uma provação por não ter conseguido alcançar o que Deus queria tratar em uma determinada área de nossa vida ou mesmo ter caído em algum pecado contra o qual estamos em frequente luta para obter cura, mas isso não muda o fato de que Deus nos ama e nos aceita incondicionalmente por sua graça.
A aceitação diz respeito, portanto, à dimensão de nossa justificação diante de Deus e a aprovação ou reprovação diz respeito ao nosso processo de santificação. Devemos possuir estes conceitos bem arrumados em nossas mentes e corações para não cair em confusão todas as vezes que estivermos sendo provados ou mesmo tentados e, porventura, acabar achando que Deus está nos rejeitando com a disciplina aplicada, até mesmo porque o Senhor disciplina a quem ama a fim de produzir em nós a santidade, conforme se depreende de Hebreus 12:

4 Ora, na vossa luta contra o pecado, ainda não tendes resistido até ao sangue 5 e estais esquecidos da exortação que, como a filhos, discorre convosco: Filho meu, não menosprezes a correção que vem do Senhor, nem desmaies quando por ele és reprovado; 6 porque o Senhor corrige a quem ama e açoita a todo filho a quem recebe. 7 É para disciplina que perseverais (Deus vos trata como filhos); pois que filho há que o pai não corrige? 8 Mas, se estais sem correção, de que todos se têm tornado participantes, logo, sois bastardos e não filhos. 9 Além disso, tínhamos os nossos pais segundo a carne, que nos corrigiam, e os respeitávamos; não havemos de estar em muito maior submissão ao Pai espiritual e, então, viveremos? 10 Pois eles nos corrigiam por pouco tempo, segundo melhor lhes parecia; Deus, porém, nos disciplina para aproveitamento, a fim de sermos participantes da sua santidade. 11 Toda disciplina, com efeito, no momento não parece ser motivo de alegria, mas de tristeza; ao depois, entretanto, produz fruto pacífico aos que têm sido por ela exercitados, fruto de justiça (ARA, grifos nossos).

A cada dia que passa, percebe-se a dificuldade que é admoestar e corrigir uma pessoa, o que tem suas raízes, em grande parte, na formação e criação familiar, em que os pais não sabem educar seus filhos de forma que eles percebam que a finalidade da disciplina é corrigir o mau comportamento e não a rejeição da sua identidade como filhos. Os pais têm o papel fundamental na disciplina em mostrar aos filhos que o comportamento está errado, mas que eles serão sempre amados e aceitos como filhos, independentemente de sua conduta ou méritos pessoais. Isto só pode ser obtido com equilíbrio na disciplina por pais que tenham estabilidade emocional e saibam combinar a repreensão e as várias linguagens de expressão do amor: as palavras de afirmação, dizendo o quanto os filhos são amados e preciosos, mantendo com eles um canal sempre aberto de comunicação, o toque físico (os abraços, beijos, etc.), o tempo de qualidade (passeios, brincadeiras), os presentes, o serviço em favor dos filhos.
A realidade atual, contudo, é outra, qual seja a de degradação da família. Os pais não mais enxergam a tarefa de educar seus filhos como um nobre ministério desenvolvido por amor a Deus, tratando-os como a sua herança. Para muitos, ter filhos é como um fardo que não vale a pena o tempo gasto e os pais de hoje não gozam de uma boa estabilidade emocional para educar, nem tampouco tomam posse da verdade bíblica que liberta, e os filhos acabam sendo fruto de palavras ditas e “malditas”, vítimas de abusos físicos, emocionais e sexuais, abandono sentimental, divórcios, infidelidade, insegurança, o que só reforça o jugo de rejeição e um estigma de ser um “órfão de pais vivos”, de forma que as pessoas se tornam inaptas a ser corrigidas, já que interpretam qualquer correção ou crítica como uma forma de rejeição, transferindo essas memórias dolorosas de vida familiar para os seus relacionamentos com Deus e com o próximo, tendo tais relacionamentos prejudicados pela insegurança, pela amargura de alma, pelo medo de ser rejeitado e, por isso, acabam por desenvolver uma personalidade insegura, fazendo de tudo, até mesmo de forma pecaminosa, para conquistar a aprovação dos outros e de Deus e reagindo de forma completamente desproporcional e irracional a toda forma de correção ministrada para lhes edificar.
O inimigo implanta a seguinte fórmula de confusão:

Aprovação significa aceitação. Desaprovação significa não aceitação ou rejeição. Então aprovação significa, “eu sou amado e aceito”. Desaprovação significa, “eu não sou amado, mas rejeitado” (SEAMANDS, David A. Putting away childish things. In: Healing your heart of painful emotions. New York: Inspirational Press, 1993, p. 196).    

Caro leitor, sonde-se e responda para si mesmo, rogando ao Espírito Santo de Deus que lhe mostre a verdade: até que ponto sua identidade depende da graça de Deus? Até que ponto seu relacionamento com as pessoas e com Deus depende do seu desempenho e mérito pessoais? Na hora da provação, da correção ou da crítica, você se sente rejeitado, tentando se justificar veementemente ou recebe a disciplina como algo da parte de Deus para o seu bem?        

VIII) A fortaleza espiritual do engano de identidade e a crise de identidade à luz da Bíblia: a tentação e a forma de construção da idolatria, bem como uma breve apreciação do ciclo do pecado sexual e dos vícios de forma geral

A palavra chave que caracteriza o estado da queda do homem é “separação”; o pecado, corrompendo todo o nosso ser, mantendo-nos sob uma condição de mente iníqua e reprovável, separou-nos de Deus e, por via de consequência, afetou o nosso aspecto relacional, separando-nos do cultivo sadio e sem barreiras de relacionamentos com o próximo, conosco mesmos e com a natureza.
 Com a queda, o homem entrou em um estado de inimizade com Deus, passando a negar a soberania dEle sobre todas as coisas criadas, inclusive sobre si, bem como não Lhe dando a glória devida como criador; o homem, que inicialmente extraia de Deus toda a sua identidade, valor como pessoa e destino, passa por um processo de degradação de sua personalidade no qual passa a extrair a sua identidade das coisas criadas, ou, de acordo com as expressões utilizadas em Romanos 1:25, muda a verdade de Deus em mentira, adorando e servindo a criatura em lugar do Criador.
O texto de Romanos 1:18-25 traz de forma explícita os efeitos da queda, asseverando que o homem em sua condição natural, morto em seus delitos e pecados, não nascido do Espírito Santo encontra-se nesse estado de separação de Deus, sendo entregue a uma mentalidade maligna e sujeito toda sorte de paixões, perversões e desejos egoístas, conforme se depreende do texto abaixo transcrito:

18 A ira de Deus se revela do céu contra toda impiedade e perversão dos homens que detêm a verdade pela injustiça; 19 porquanto o que de Deus se pode conhecer é manifesto entre eles, porque Deus lhes manifestou. 20 Porque os atributos invisíveis de Deus, assim o seu eterno poder, como também a sua própria divindade, claramente se reconhecem, desde o princípio do mundo, sendo percebidos por meio das coisas que foram criadas. Tais homens são, por isso, indesculpáveis; 21 porquanto, tendo conhecimento de Deus, não o glorificaram como Deus, nem lhe deram graças; antes, se tornaram nulos em seus próprios raciocínios, obscurecendo-se-lhes o coração insensato. 22 Inculcando-se por sábios, tornaram-se loucos 23 e mudaram a glória do Deus incorruptível em semelhança da imagem de homem corruptível, bem como de aves, quadrúpedes e répteis. 24 Por isso, Deus entregou tais homens à imundícia, pelas concupiscências de seu próprio coração, para desonrarem o seu corpo entre si; 25 pois eles mudaram a verdade de Deus em mentira, adorando e servindo a criatura em lugar do Criador, o qual é bendito eternamente. Amém! 26 Por causa disso, os entregou Deus a paixões infames; porque até as mulheres mudaram o modo natural de suas relações íntimas por outro, contrário à natureza; 27 semelhantemente, os homens também, deixando o contato natural da mulher, se inflamaram mutuamente em sua sensualidade, cometendo torpeza, homens com homens, e recebendo, em si mesmos, a merecida punição do seu erro. 28 E, por haverem desprezado o conhecimento de Deus, o próprio Deus os entregou a uma disposição mental reprovável, para praticarem coisas inconvenientes, 29 cheios de toda injustiça, malícia, avareza e maldade; possuídos de inveja, homicídio, contenda, dolo e malignidade; sendo difamadores, 30 caluniadores, aborrecidos de Deus, insolentes, soberbos, presunçosos, inventores de males, desobedientes aos pais, 31 insensatos, pérfidos, sem afeição natural e sem misericórdia. 32 Ora, conhecendo eles a sentença de Deus, de que são passíveis de morte os que tais coisas praticam, não somente as fazem, mas também aprovam os que assim procedem (Romanos 1:18-32 – ARA, grifos nossos).

O homem é um ser adorador por natureza e estrutura intrínseca, isto é, ele extrai sua identidade daquilo que adora, daquilo que atribui como fonte de valor para si, portanto, se ele não adora a Deus, passará a adorar as coisas criadas, fazendo das mesmas o eixo sobre o qual sua vida gravitará e, assim fazendo, será transformado à imagem e semelhança das coisas que adora e será tão vazio quanto elas. Neste sentido, o Salmo 115:4-8 assim veicula a respeito da idolatria:

4 Prata e ouro são os ídolos deles, obra das mãos de homens. 5 Têm boca e não falam; têm olhos e não veem; 6 têm ouvidos e não ouvem; têm nariz e não cheiram. 7 Suas mãos não apalpam; seus pés não andam; som nenhum lhes sai da garganta. 8 Tornem-se semelhantes a eles os que os fazem e quantos neles confiam (ARA, grifos nossos).

E também o Salmo 97:7 dispõe: “Sejam confundidos todos os que servem a imagens de escultura, os que se gloriam de ídolos; prostrem-se diante dele todos os deuses” (ARA). O texto citado traz uma palavra interessante quanto ao ciclo de formação da idolatria, qual seja o verbo “confundir”, pelo que se infere que o homem em sua condição decaída e idólatra das coisas criadas padece de estado de confusão quanto à sua identidade. O dicionário Michaelis assim define a palavra confusão:

confusão
con.fu.são
sf (lat confusione) 1 Ação ou efeito de confundir. 2 Estado do que se acha aturdido: A confusão do motorista originou-se da balbúrdia do trânsito. 3 Dir Mistura de coisas pertencentes a diversos donos. 4 Dir Modo de extinção da obrigação pela reunião, na mesma pessoa, das qualidades de devedor e credor relativamente à mesma coisa ou obrigação. 5 Falta de ordem ou de método. 6 Tumulto, revolta, barulho. 7 Estado do que encontra dificuldade em discernir. 8 Falta de clareza. 9 Embaraço, causado pela vergonha de alguma falta. 10 Perplexidade. Antônimos (acepções 2, 7, 8 e 10): clareza; (acepções 5 e 6): ordem. C. das línguas: impossibilidade em que, segundo a Bíblia, se acharam os operários da torre de Babel, de se entenderem mutuamente. C. de poderes: estado de um governo em que os poderes estão mal limitados ou se impedem uns aos outros. C. mental, Psiq: estado mental caracterizado pela mistura de ideias, a qual conduz à perturbação do entendimento e consequente perplexidade (grifo nosso).

Dentre as acepções da palavra “confusão”, a que melhor descreve a condição da queda é a dificuldade de discernir, ou melhor, a incapacidade de discernir as verdades espirituais, o que está em consonância com 1 Coríntios 2:14, no sentido de que o homem natural não aceita as coisas do Espírito de Deus, porque lhe são loucura; e não pode entendê-las, porque elas se discernem espiritualmente.
O homem em seu estado natural de queda, portanto, é incapaz de discernir as verdades espirituais, inclusive a verdade fundamental a respeito de sua identidade, criado à imagem e semelhança de Deus para conhecê-lo e desfrutar de íntima comunhão com Ele e do Seu amor incondicional e, por via de consequência, devido à separação de Deus, sofre de uma “solidão primal”, um vazio infinito que só pode ser preenchido pela presença de Deus e, para compensar e reparar este vazio e solidão, ele passa a se distorcer e se contorcer em direção as coisas criadas para das mesmas extrair sua identidade e, assim, a iniquidade da idolatria vai se formando no coração humano, o que, em essência, nada mais é do que amar a si mesmo usando pessoas e coisas como meio, o que gera um “eu” falso e usurpador da verdadeira vida de Deus, um “eu” fragmentado, partido e separado de Deus e faminto da necessidade insaciável de se auto afirmar para existir. Neste sentido, as palavras de Leanne Payne:

“Nascemos incapazes. Logo que somos plenamente conscientes descobrimos a solidão”, escreveu C. S. Lewis. Nascidos solitários, tentamos nos encaixar, ser o tipo de gente que faça as outras pessoas gostarem de nós. Devido a essa carência e extrema necessidade de afirmação dos outros, acabamos nos comprometendo – usando qualquer máscara, ou muitas máscaras; fazemos até coisas que não gostamos buscando sermos aceitos. Entortamo-nos (usando outra imagem de Lewis), contorcemo-nos, em direção à criatura, tentando encontrar a nossa identidade nela. Devagar e compulsivamente, o falso “eu” fecha a sua concha dura e quebradiça ao nosso redor, e o que nos resta é nossa solidão (Imagens partidas. São Paulo: Sepal, 2001, p. 151).

Deus nos criou com uma série de necessidades naturais a ser satisfeitas para o nosso “bom funcionamento”, tais como alimentação, segurança, proteção, pertencimento, amor, autoestima, realização pessoal, de sentir que há um propósito para nossas vidas. De acordo com Mark e Debra Laaser, todo ser humano tem sete desejos, que são básicos e universais, quais sejam o desejo de ser ouvido e ser entendido, de ser afirmado, de ser abençoado, de estar seguro, de ser tocado, de ser escolhido, e de ser incluído e, é no preenchimento e na satisfação destas necessidades, que o ser humano valida sua própria existência e pode desfrutar relacionamentos profundos e ricos com Deus e com as pessoas (Los Siete Deseos de Todo Corazón. Miami: Editorial Vida, 2009, p. 13).
Essas são necessidades naturais, dadas por Deus, integrantes da nossa estrutura como seres humanos e o nosso estado de queda não mudou o fato de que necessitamos preenchê-las para conferir significação para as nossas vidas; são partes componentes da nossa identidade, contudo, em razão da queda e do nosso coração corrupto pelo pecado (Jr 17), procuramos a satisfação de tais necessidades nas coisas criadas e nas pessoas (Rm 1:25), rejeitando o preenchimento das mesmas em Deus e é ai que o inimigo entra.

13 Ninguém, ao ser tentado, diga: Sou tentado por Deus; porque Deus não pode ser tentado pelo mal e ele mesmo a ninguém tenta. 14 Ao contrário, cada um é tentado pela sua própria cobiça, quando esta o atrai e seduz. 15 Então, a cobiça, depois de haver concebido, dá à luz o pecado; e o pecado, uma vez consumado, gera a morte (Tiago 1:13-15 – ARA).

Conforme já exposto acima, em toda tentação, o inimigo lança sobre nós o engano de identidade, dizendo: “falta algo em você e você precisa fazer algo a respeito para suprir essa necessidade”. Como disse Thomas Merton: “Nossas vidas são formatadas pelas coisas que desejamos” e, assim, o inimigo nos leva, através do engano de identidade, a satisfazer nossas necessidades básicas e universais de forma pecaminosa, construindo uma vida marcada pela separação de Deus e pela idolatria.
Essas necessidades fundamentais devem ser supridas em primeiro lugar na família; ela é a grande modeladora da nossa identidade e, por isso, o diabo não tem poupado esforços para desestruturá-la e destruí-la a fim de que a descendência gerada saia toda deformada emocionalmente. É através dos nossos pais e figuras de autoridade em nossas vidas que a nossa identidade vai sendo construída ao longo da infância e adolescência e o alvo é que essas pessoas saibam passar-nos aceitação, compreensão, afeto, segurança, benção, direção, afirmação e valor como pessoas, de modo que a nossa estrutura emocional seja plenamente desenvolvida e saiamos do egoísmo infantil para uma vida adulta madura de relacionamentos com o próximo e com Deus.
Com a desestruturação da família seja na forma de infidelidade, divórcios, abusos físicos, emocionais e sexuais, traumas ou abandono emocional, o inimigo constrói a iniquidade da rejeição no indivíduo, isto é, a descendência fica prejudicada por não ter conseguido atingir o preenchimento dessas necessidades fundamentais componentes da identidade pessoal, tendo como resultado de todo esse quadro o surgimento de indivíduos que, apesar de cronologicamente adultos, são emocionalmente crianças, egoístas, autocentrados, querendo ser o centro das atenções e querendo que todas as suas necessidades sejam satisfeitas imediatamente, já que este é o mundo da criança e tais indivíduos não tiveram a sua identidade liberada para agir e interagir como seres dotados de autonomia para crescer, multiplicar, intervir no meio ambiente e transformá-lo e realizarem-se como pessoas.
Na fase da adolescência, tais desejos fundamentais são sexualizados e o indivíduo carente passa a buscar sua satisfação através das práticas sexuais; procura-se através da relação sexual e dos comportamentos sexuais (pornografia, masturbação, fetiches, exibicionismo, etc.) atingir essas necessidades de afirmação, afeto, segurança, identidade como uma forma de “compensar”, “reparar” a dor psíquica da rejeição, já que o sexo é a forma mais profunda de interação e intimidade entre as pessoas. É por isso que, na mesma proporção em que a família é degenerada, crescem os índices de perversões e vícios sexuais. Essa “fome emocional” transforma o indivíduo em um “canibal emocional”; o indivíduo quer se “alimentar” do que o outro tem, buscando no outro a sua identidade e valor como pessoa, vendo no parceiro e nas práticas sexuais uma forma de completar aquilo que perdeu, isto é, sua identidade, que, aos seus olhos, é rejeitada e inferior, transformando, assim, o parceiro e as práticas sexuais em um verdadeiro ídolo ao qual o indivíduo investe “adoração”, tempo, recursos, intimidade e nutrindo com ele uma relação de dependência emocional.
A mesma dinâmica do vício sexual se aplica ao vício em trabalho, vício de comprar, vício em atividade física, vício em drogas e substâncias entorpecentes, entre outros; todos são formas de compensação da dor causada pela perda da identidade e que mantém a pessoa em dependência emocional quanto à busca de satisfação das necessidades emocionais básicas.
Tão somente pelo fato da queda original e da consequente separação de Deus por causa do pecado, o ser humano sofre de uma “solidão primal”, um vazio que tenta preencher através das coisas criadas e das pessoas, por isso não há ser humano na face da Terra que não necessite ser curado de uma forma doentia de amor. Contudo, essa “solidão primal” agrava-se quando as necessidades fundamentais do ser humano não são preenchidas através da família, pais, figuras de autoridade, transformando-se em um verdadeiro cativeiro emocional que empurra a pessoa para todo tipo de satisfação egoísta, paixões e perversões e, o pior de tudo isso, é que o indivíduo espiritual e emocionalmente enfermo vai reproduzindo as feridas que recebeu em sua descendência, ou seja, ele fere com a mesma arma que foi ferido e, assim, a rejeição, as amarguras de alma e os vícios vão passando de pai para filho.  
Pode-se, portanto, entender quão mortífero é o engano de identidade. O inimigo vem com suas sugestões malignas, pervertendo nossos desejos básicos de identidade e destino a fim de que os preenchamos de forma pecaminosa e imprópria e, assim, ele vai distorcendo a nossa personalidade com o pecado e a iniquidade, com a construção das fortalezas da mente. A sugestão satânica: “falta algo em você e você precisa fazer algo a respeito para suprir essa necessidade” é altamente nociva e, para um indivíduo emocionalmente carente, é mortal, já que acredita e recebe como “verdade” o fato de ser despido de valor e propósito de vida e transforma-se em escravo dos seus próprios desejos e emoções vivendo em função de satisfazê-los. E para manter o indivíduo preso no cativeiro, o inimigo continua a dizer: “você não pode viver sem isso”, “você não pode viver sem fulano”.
Diante do exposto, reflita e peça ao Espírito Santo para lhe revelar a verdade: naquelas áreas em que você é frequentemente tentado e cai, quais os desejos que o diabo está querendo perverter? O que o inimigo tem insinuado que falta em você relativamente as necessidades fundamentais de ser ouvido e ser entendido, de ser afirmado, de ser abençoado, de estar seguro, de ser tocado, de ser escolhido, e de ser incluído?
Identificar a mentira é o primeiro passo para a restauração.

IX) Ouvindo a Palavra que cura: o princípio da fé e a necessidade de obedecer a Deus quanto à definição da nossa identidade, bem como a importância das doutrinas fundamentais da graça para a construção da vida ressurreta em Cristo

19 Então, na sua angústia, clamaram ao SENHOR, e ele os livrou das suas tribulações. 20 Enviou-lhes a sua palavra, e os sarou, e os livrou do que lhes era mortal. 21 Rendam graças ao SENHOR por sua bondade e por suas maravilhas para com os filhos dos homens! (Salmo 107:19-21 – ARA, grifo nosso).

Se quiserdes e me ouvirdes, comereis o melhor desta terra (Isaías 1:19 – ARA).

Assim, pois, como diz o Espírito Santo: Hoje, se ouvirdes a sua voz, não endureçais o vosso coração como foi na provocação, no dia da tentação no deserto, onde os vossos pais me tentaram, pondo-me à prova, e viram as minhas obras por quarenta anos (Hebreus 3:7-9 – ARA, grifo nosso).

Ouvir Deus não é simplesmente escutar a respeito de suas palavras, mas, sobretudo, obedecê-lo, praticar a sua Palavra de forma concreta, exercitar-se na piedade e seguir as orientações e direções que Ele nos manda em nosso relacionamento diário, até mesmo porque, como Jesus disse, “aquele que tem os meus mandamentos e os guarda, esse é o que me ama; e aquele que me ama será amado por meu Pai, e eu também o amarei e me manifestarei a ele” (João 14:21).
Um dos aspectos que compõe a nossa obediência a Deus diz respeito a nossa identidade. Temos que aprender a ouvir e obedecer Deus no que concerne a nossa posição diante dEle, nosso valor como pessoas e os propósitos dEle para as nossas vidas e, assim, receberemos a vida que vem dEle por intermédio do Espírito Santo, porque, como Jesus disse, “o espírito é o que vivifica; a carne para nada aproveita; as palavras que eu vos tenho dito são espírito e são vida” (João 6:63). De nada adianta pedirmos a Deus uma vida de superação se nós não ouvimos a sua voz, nem o obedecemos tomando atitudes concretas para caminhar em direção a uma vida restaurada, inclusive quanto à definição de nossa identidade; “Deus não nos dá uma vida de superação – Ele nos dá vida enquanto superamos” (CHAMBERS, Oswald. My utmost for his highest. Grand Rapids: Discovery House Publishing, 1992, meditação de 16 de fevereiro).
A cada dia, é-nos posta a escolha a respeito de que voz nós ouviremos para conduzir nossas vidas. Temos de decidir se ouviremos a voz de Deus, as sugestões e mentiras malignas ou, mesmo, se seguiremos a nossa própria vontade distorcida pelo nosso coração contaminado pelo pecado. Todos os dias somos desafiados a obedecer diferentes vozes e prosperaremos na voz que ouvirmos e obedecermos.
Viveremos em conformidade com a voz que decidirmos obedecer e seremos aquilo que acreditarmos que somos, porque, como imagina o homem em sua alma, assim ele é (cf. Provérbios 23:7a). Daí, a necessidade de negar-nos a nós mesmos a cada dia, tomar a nossa cruz, seguirmos a Cristo e o que Ele fala a nosso respeito e morrer para o nosso velho homem (Lc 9:23), morrer para a necessidade de conseguir a aprovação dos outros como fonte de identidade, morrer para a nossa velha autoimagem e autoestima, morrer para a nossa velha identidade definida pelo pecado e pelas mentiras de satanás a respeito de nosso valor como pessoas, passando a experimentar a “plenitude do ser” em nossa união íntima com o Espírito Santo, como tabernáculos vivos de Deus, sendo acolhidos pela sua aceitação e amor incondicionais, nutrindo relacionamentos sadios com o nosso semelhante, bem como perseverando e confiando que Ele nos guia e nos capacitará para dar um passo de cada vez nesse processo de cura e crescimento espiritual e, assim, como resultado da vitória diante de cada circunstância negativa e de cada provação posta por Deus para tratar o nosso caráter, vamos sendo transformados de glória em glória à imagem e semelhança de Cristo.       
A fé é um princípio espiritual inegociável nesse “processo de tornar-se pessoa”, já que aquilo em que acreditamos a nosso respeito determina o que sentimos e fazemos. Tudo será feito no mundo espiritual conforme a nossa fé (cf. Mt 9:29) e isso funciona tanto em sentido positivo, quanto em sentido negativo. Se tivermos fé na Palavra de Deus no sentido de que temos valor aos seus olhos por termos sido feitos à sua imagem e semelhança, por termos sido comprados pelo precioso sangue de Jesus, por desfrutarmos da condição de filhos amados do Senhor, abrimos uma porta para que o Espírito Santo opere em nós e seremos transformados e prosperemos nessa Palavra. Se acreditarmos nas mentiras de satanás, nos chamados “dardos inflamados do maligno”, nós herdaremos a morte que provém dessas mentiras. O inimigo usa um arsenal de guerra carregado de mísseis de rejeição, medo, insegurança, solidão, amargura, vingança, entre outros e, se eles nos atingirem, isto é, se nós os recebermos como fazendo parte de nós, colheremos a destruição de sua explosão e reproduziremos as feridas em nosso diálogo interior e projetaremos as ofensas e os sentimentos negativos em nossos relacionamentos com Deus e com o próximo.
Por exemplo, se eu acredito no medo e não o enfrento, ficando sempre acuado como um animal encurralado, “aquilo que temo me sobrevém, e o que receio me acontece” (Jó 3:25 – Nova Versão Internacional – NVI). O medo é simplesmente fé no que satanás diz. Aquilo que eu tenho medo acontece comigo. Caso nós tenhamos medo de não estar agradando a Deus ou as pessoas ou medo de ser rejeitados, desenvolveremos um comportamento que nos tornará realmente desagradáveis e que fará com que as pessoas venham a nos rejeitar (no sentido do texto, ver MEYER, Joyce. O vício de agradar a todos: liberte-se da necessidade de aprovação. Belo Horizonte: Bello Publicações, 2009, p. 23-24); isto porque a pessoa temerosa pela rejeição é carente de valor pessoal e dependente da aprovação constante dos outros e, assim sendo, ela agirá de tal forma para conseguir aprovação que desconhece muitas vezes os limites daquilo que é ridículo e inconveniente, tornando-se uma verdadeira “sanguessuga” nos relacionamentos, já que ela acaba não respeitando o espaço da individualidade, intimidade e integridade do outro, usando-o de forma abusiva e inconveniente para preencher suas necessidades pessoais de afeto, segurança e reconhecimento; e, dentro desses relacionamentos sufocantes, marcados pela possessividade, ira, ciúmes e do uso da culpa como arma de manipulação, a pessoa acabará sofrendo a rejeição que tanto teme devido à exaustão emocional do outro que não aguenta viver nessa união “simbiótico-parasitária” e sofrerá também a rejeição de outras que, mesmo não fazendo parte da relação, observam os comportamentos inconvenientes e nocivos e preferem não nutrir um relacionamento mais próximo com aquela pessoa; outros na tentativa de suprir as suas carências de afirmação farão de tudo para ser notados e aceitos, por exemplo, vestindo-se de forma “estilosa” para não dizer escandalosa, falando alto, rindo mais alto do que os outros, chamando a atenção para os seus feitos e realizações, mostrando-se mais inteligentes ou mais capazes do que outros, criticando compulsivamente, tudo com a finalidade de chamar a atenção e ser notado; outros serão altamente faladores, brincalhões, o “palhaço da turma” para chamar a atenção para si; outros assumirão a forma do “coitadinho” para receber afeto, manipulando as pessoas ao seu redor inconscientemente devido a sua profunda insegurança, já que, em matéria de relacionamentos, ou confiamos na pessoa ou, então, manipulamo-la para que ela se comporte conosco da forma como queremos e se encaixe de acordo com os nossos padrões de aceitabilidade. De forma semelhante, em nosso relacionamento com Deus, ou confiamos nEle, ou, então, tentaremos fazer as coisas do nosso jeito, ainda que sinceramente não o percebamos deste modo.
Essa batalha de decidir a que voz ouviremos como significante da nossa identidade e destino, se a voz de Deus, a de satanás ou a nossa própria voz interior, o nosso ser “diabólico”, é uma batalha diária, um conflito de desejos e vontades entre a carne e o espírito que atravessaremos enquanto vivermos nesse mundo e que é bem descrito pelo apóstolo Paulo em Romanos 7:

14 Porque bem sabemos que a lei é espiritual; eu, todavia, sou carnal, vendido à escravidão do pecado. 15 Porque nem mesmo compreendo o meu próprio modo de agir, pois não faço o que prefiro, e sim o que detesto. 16 Ora, se faço o que não quero, consinto com a lei, que é boa. 17 Neste caso, quem faz isto já não sou eu, mas o pecado que habita em mim. 18 Porque eu sei que em mim, isto é, na minha carne, não habita bem nenhum, pois o querer o bem está em mim; não, porém, o efetuá-lo. 19 Porque não faço o bem que prefiro, mas o mal que não quero, esse faço. 20 Mas, se eu faço o que não quero, já não sou eu quem o faz, e sim o pecado que habita em mim. 21 Então, ao querer fazer o bem, encontro a lei de que o mal reside em mim. 22 Porque, no tocante ao homem interior, tenho prazer na lei de Deus; 23 mas vejo, nos meus membros, outra lei que, guerreando contra a lei da minha mente, me faz prisioneiro da lei do pecado que está nos meus membros. 24 Desventurado homem que sou! Quem me livrará do corpo desta morte? 25 Graças a Deus por Jesus Cristo, nosso Senhor. De maneira que eu, de mim mesmo, com a mente, sou escravo da lei de Deus, mas, segundo a carne, da lei do pecado (Romanos 7 – ARA, grifo nosso).
  
A Bíblia é, de fato, um livro digno de confiança, porque não idealiza seus personagens como se estes fossem super heróis ou super crentes; ela os coloca como homens comuns, não escondendo suas fraquezas e pecados, mas antes os expõe de uma forma clara e contundente a fim de que possamos ter em mente que, qualquer que seja o nível espiritual que atinjamos, dependeremos sempre da graça de Deus para que possamos levar uma vida que O agrade em todos os aspectos.
O próprio apóstolo Paulo disse a respeito das suas fraquezas em relação à graça de Deus:

Então, ele [Deus] me disse: A minha graça te basta, porque o poder se aperfeiçoa na fraqueza. De boa vontade, pois, mais me gloriarei nas fraquezas, para que sobre mim repouse o poder de Cristo. Pelo que sinto prazer nas fraquezas, nas injúrias, nas necessidades, nas perseguições, nas angústias, por amor de Cristo. Porque, quando sou fraco, então, é que sou forte (2 Co 12:9-10 – ARA).

Posto que buscais prova de que, em mim, Cristo fala, o qual não é fraco para convosco; antes, é poderoso em vós. Porque, de fato, foi crucificado em fraqueza; contudo, vive pelo poder de Deus. Porque nós também somos fracos nele, mas viveremos, com ele, para vós outros pelo poder de Deus (2 Co 13:3-4 – ARA).

Tudo posso naquele que me fortalece (Fp 4:13 - ARA).

Este é o primeiro passo para a construção de uma identidade segura em Deus, decidir ouvi-lo e depender dEle para todos os aspectos da nossa vida, confiando em suas direções e caminhos. Confiança não é instantânea, mas é algo trabalhado no relacionamento e cresce na medida em que conhecemos Deus, experimentamos o seu caráter e passamos pelos testes da fé. Portanto, diante das tribulações, tentações e quedas, abra o seu coração ao Senhor, seja sincero e confesse até que ponto sua confiança está ou não está nEle e peça capacitação ao seu Espírito Santo para que você possa resistir, perseverar e ser aprovado durante a prova que vai te conduzir ao aperfeiçoamento do caráter; lembre-se você só precisa de uma fé tão pequena quanto um grão de mostarda para ver os milagres de Deus acontecerem, portanto, nunca desista e persevere, porque, se você crer, verá a glória do Senhor e será levado a um nível de fé e confiança mais profundos, amando-O mais intensamente pela gratidão que encherá seu coração.
O segundo passo para a construção de uma autoimagem e identidade seguras em Deus é renunciar a mentira diabólica de que os nossos pecados e fraquezas tem poder para definir o que somos e o nosso valor como pessoas. Temos que ouvir a Deus no que tange à definição de nossa identidade; Deus é fluente em todas as linguagens do amor e a Escritura é carregada de palavras de afirmação ao nosso respeito no sentido de que somos seus amados, seus eleitos antes da fundação do mundo para sermos santos e irrepreensíveis, acolhidos e adotados como filhos para o louvor da glória de sua graça, remidos pelo sangue precioso de Cristo (Ef 1); somos raça eleita, sacerdócio real, nação santa, povo de propriedade exclusiva de Deus (1 Pe 2:9); somos portadores do ministério da reconciliação e embaixadores de Cristo (2 Co 5:18-20); portanto, todos estes qualificativos devem ser material útil e fundamental para a renovação da nossa mente segundo os propósitos de Deus, de modo que possamos experimentar a vontade dEle que é boa, perfeita e agradável, bem como destruir os enganos de identidade e os “rótulos” que o inferno quer jogar em nosso coração.
Se observarmos atentamente o capítulo 7 da epístola aos Romanos, acima transcrito, perceberemos que, no meio da guerra entre fazer a vontade da carne dando vazão ao pecado ou fazer a vontade de Deus, o apóstolo Paulo não atraía para si a identidade do pecado, dizendo, por duas oportunidades (vv. 17 e 20), que, quando ele falhava em obedecer a Deus dando vazão ao mal que ele em sua mente não queria fazer, já não era ele quem o fazia, mas o pecado que “habita” nele; o apóstolo Paulo reconhece que o pecado “habita” nele como um dos efeitos da queda do homem em não reconhecer a glória e a soberania de Deus, mas, em seu coração, sabia que o pecado não tem mais condições, nem mesmo poder para determinar a sua identidade, agora resgatada pela abundante graça de Deus.
Ao dizer que, quando ele fazia o mal que não queria, não era mais ele, mas o pecado que “habitava” nele, o apóstolo Paulo não estava de modo algum fugindo de sua responsabilidade pela prática do pecado, nem tampouco dizendo que, em virtude da graça, ele poderia pecar o quanto quisesse. Não, muito pelo contrário, se interpretarmos a epístola aos Romanos em sua totalidade e dentro de seu contexto, nós veremos que o apóstolo começa falando da hediondez do pecado e dos efeitos da nossa desobediência, notadamente a separação entre nós e Deus e a consequente morte espiritual, bem como o surgimento de todo o tipo de comportamento iníquo, rebelde, pervertido, dominado pelas paixões da carne (Rm 1); veremos o quanto ele denuncia que Deus abomina o pecado e, por causa da nossa transgressão, a humanidade está condenada à perdição e ao juízo, bem como ressaltando que nós todos somos indesculpáveis diante de Deus, tanto judeus, quanto gentios (= não-judeus), assentando, portanto, o princípio da responsabilidade pessoal e individual pelo pecado cometido e pela ira que Deus despeja sobre toda a maldade do coração humano (Rm 2 e 3); encontramos o apóstolo Paulo dizendo incisivamente que a graça não é uma licença para pecar em razão de que aqueles que nasceram verdadeiramente de Cristo receberam uma vida nova e ressurreta à semelhança de nosso salvador, não mais sendo escravos do pecado (Rm 6).
A metodologia expositiva do apóstolo Paulo é contrastar a terrível realidade da morte e perdição espiritual causada pelo pecado com a realidade redentora da graça de Deus obtida por meio dos méritos de Cristo e sua morte e sacrifício na cruz como pagamento da dívida pelo pecado, isto porque só podemos entender a importância do remédio quando compreendemos a seriedade da doença e suas graves consequências; não temos como valorizar o sacrifício de Cristo se não somos convencidos do pecado, da justiça e do juízo de Deus por meio do Espírito Santo (Jo 16:8).
A epístola aos Romanos também aponta de forma categórica que a redenção do homem em todos os aspectos depende da graça de Deus, a qual está fundamentada nos méritos de Cristo e sua morte de cruz, mostrando o apóstolo Paulo as várias facetas que compõem a salvação do crente redimido, as chamadas doutrinas fundamentais da graça, quais sejam o chamado eficaz do Espírito Santo como ato da soberana vontade de Deus em salvar o homem (Rm 8:30 e Rm 9:6-13); o arrependimento e o novo nascimento (Rm 5:18 e Rm 6:1-5); a justificação pela fé (Rm 3:28), a santificação (Rm 6:6-14); a adoção do crente como filho de Deus (Rm 8:12-17); a certeza da salvação (Rm 8:16, Rm 8:30-39 e Rm 5:2); as boas obras, entendidas como aquelas que Deus ordena em sua Palavra e que são fruto da obra de santificação que Deus realiza em nós, fruto, portanto, de uma fé viva e verdadeira (Rm 6:22 e Rm 12); a perseverança dos santos e a vindoura glorificação (Rm 8:30-39).
            Portanto, seguindo a ordem de ideias aqui expostas, quando o apóstolo Paulo disse que, quando ele fazia o mal que não queria, não era mais ele, mas o pecado que “habitava” nele, ele referia-se a sua condição diante de Deus como justificado pela fé, reconhecendo que ele ainda convivia com a natureza pecaminosa como efeito da queda do homem, mas que sua dívida tinha sido paga por Cristo na cruz do calvário e ninguém mais poderia ter o direito de intentar qualquer acusação contra ele, já que ninguém pode ser demandado por dívida paga; e, diante da quitação de sua dívida, ele vivia com seu coração grato e livre para adorar a Deus, desfrutando da identidade em Cristo e da realidade de que o Espírito Santo habitava pessoalmente dentro dele, trazendo uma nova vida, pelo que o pecado já não tinha mais condições de determinar a sua identidade e valor como pessoa (Rm 8:1-11).
            O apóstolo Paulo entendeu que a graça de Deus o livrou do pavor da morte causada pelo pecado. Graça é favor imerecido, caso contrário, não seria graça. Somos salvos pela graça mediante a fé, recebendo de Deus a justificação, a absolvição da culpa pelo pecado, o cancelamento da dívida que tínhamos com Ele por causa da nossa desobediência e das nossas transgressões. Justificação significa que é aplicado a todos aqueles que receberam a nova vida em Cristo pelo Espírito Santo a justiça de Cristo realizada na cruz, pagando o salário do pecado. Justificação, portanto, é um ato declaratório da soberana e graciosa vontade de Deus em declarar como justo e isento de pena os eleitos que Ele remiu com o sangue de Jesus. A justificação é similar ao ato de um juiz que absolve um réu que seria condenado por seus atos, mas que não recebeu a pena, porque incidiu em alguma circunstância que a lei considera como tolerável ou até mesmo conforme ao direito, retirando sua ilicitude ou culpabilidade, a exemplo do que ocorre com alguém que mata uma pessoa que está prestes a lhe matar (legítima defesa), de alguém que se apropria de automóvel alheio para evitar que uma pessoa que está passando mal venha a morrer (estado de necessidade), entre outros. É um ato declaratório e instantâneo, no qual somos declarados justos imediatamente quando passamos pela experiência do novo nascimento, isto porque justificar não é santificar e não depende da aquisição de nenhum “grau” posterior de aceitabilidade diante de Deus; justificar é externo, é algo que Deus faz por nós, diferente da santificação que é interna, algo que Deus realiza em nós, dissolvendo a nossa natureza pecaminosa e nos transformando à imagem e semelhança de Cristo (neste sentido, ver KENNEDY, D. James. Verdades que transformam. 4 ed. São José dos Campos: Fiel, 2005, p. 84-88).
A justificação se torna necessária porque ato nenhum que venha do homem pode justificá-lo diante de Deus, nem tampouco o homem pode se auto justificar alegando qualquer inocência em razão de ser sempre culpado diante de Deus por causa do pecado, pelo que nos resta tão somente cair nas garras da graça do Senhor e receber dEle a aceitação de que tanto necessitamos por sermos seres imperfeitos, decaídos e em crise de identidade pela solidão interior causada pela queda no Éden.
Justificar é muito mais do que perdoar. É um ato pelo qual Deus declara que todas as exigências de sua lei perfeita estão satisfeitas, enxergando-nos através dos méritos de Cristo, tornando-nos justos e nos adotando em sua família. Nenhum juiz ou autoridade humana pode tornar um criminoso justo, nem mesmo adotá-lo em sua família, mas é exatamente isso que Deus faz por nós.
Deus só pode nos contemplar através da justiça de Cristo e é isto que fundamenta a nossa identidade diante dEle e, se Ele nos justifica, absolutamente ninguém pode nos condenar, nem mesmo nós temos esse direito, razão pela qual cabe a nós receber pela fé esta dádiva da graça e admitir diante do senhor a nossa falência espiritual e moral, renunciando o nosso orgulho e se submetendo a Ele (neste sentido, ver KENNEDY, D. James, Op. cit., p. 90-91).
Se Deus nós declara justos pela obra expiatória de Jesus e só pode nos contemplar pelos méritos do nosso salvador, temos de obedecer ao Senhor, enxergando-nos como Ele nos enxerga, justos, livres de toda a culpa, amados e aceitos em Sua família, isto é, temos que obedecer a Deus quanto ao que Ele diz em relação à definição de nossa identidade espiritual, já que só assim poderemos descansar e fluir naquilo que Deus tem para nós, bem como viver uma vida abundante, podendo separar a nossa identidade, o nosso ser, dos comportamentos pecaminosos que “habitam” em nós, que “estão” em nós, mas não são constituintes da nossa identidade em Cristo.
Deus resolveu o problema da morte espiritual, de modo que nossa identidade não é a de um morto perdoado, mas de um nascido de novo, um vivo em Cristo, habitação pessoal do Espírito Santo, chamado para ser santo e alvo constante da graça e do amor de Deus; se pensarmos desta forma, isso será revolucionário em nossas vidas, mudando nossa autoimagem e autoestima, transformando-nos à imagem e semelhança de Jesus de glória em glória.
Leitor, agora você entende a necessidade de ter bem arrumado na mente e no coração as doutrinas fundamentais da graça? Sem elas, uma pessoa não pode crescer com saúde no Evangelho e, infelizmente, esta é uma das causas pelas quais muitos andam fracos e doentes, porque não conhecem a herança que Cristo nos concedeu na cruz.

X) A ruína da incredulidade, da desobediência e da rebelião: a fortaleza espiritual do “não posso” e do “não consigo” e o exemplo da primeira geração de hebreus que saiu do Egito

            Deus sempre demonstrou amor e compaixão para com o povo que separou para si, o que, sem dúvida, foi demonstrado na história do êxodo do Egito. Deus ouviu o clamor de uma geração de hebreus que vivia no Egito sob o jugo de pesada servidão, além da morte de seus filhos homens por decreto de Faraó. O Senhor, usando Moisés, que foi levantado como libertador, mostrou o seu inimaginável poder, tirando o povo das mãos de Faraó por meio de sinais, prodígios e maravilhas, bem como os sustentou pela peregrinação no deserto de forma sobrenatural, provendo, por exemplo, água da rocha, transformando águas amargas em doces, maná caindo do céu, envio de codornizes para alimentá-los e, ainda, viram poderosas manifestações da presença de Deus, tal como o monte Sinai fumegando e tremendo.
            Toda essa manifestação de sobrenatural de Deus, a qual nenhuma outra geração até hoje presenciou em igual intensidade, não foi suficiente para tirar do coração deles a incredulidade. Manifestação de sinais, prodígios e maravilhas não muda o coração de ninguém, mas, infelizmente, muitas congregações religiosas reduzem o seu “evangelho” a um discurso de “unção e poder de Deus”. A nossa permanência no Evangelho de Jesus Cristo depende, sobretudo, da conversão do nosso coração, isto é, do arrependimento do pecado e da iniquidade e da consequente renovação da mente com a não conformidade dos padrões deste mundo para que possamos desfrutar de um relacionamento íntimo e sincero com Deus, experimentando a vontade dEle, que é boa, perfeita e agradável (Rm 12:2).
            Se manifestações de sobrenatural de Deus convertessem o coração de alguém, com certeza, a primeira geração de hebreus que saiu do Egito teria sido a geração mais piedosa que esta Terra já teve, contudo, não foi o que ocorreu.
            O desenvolvimento da salvação é uma questão de disposição mental e de vontade, que cabe a nós, com o auxílio do Espírito Santo. Infelizmente, os israelitas da primeira geração do êxodo decidiram permanecer na incredulidade, na desobediência e, até mesmo, chegar ao ponto da rebelião, conforme se depreende da narrativa contida em Números 13 e 14.
            O Senhor já tinha empenhado a sua Palavra no sentido de que daria a eles a terra que tinha prometido a Abraão e, quando a hora de conquistá-la chegou, Moisés enviou doze líderes para espiar a terra, dez dos quais, após o retorno da missão, fizeram o povo esmorecer com seu relato, tendo permanecido na incredulidade, mesmo depois de Calebe ter tentado animar o povo a conquistar a terra:

27 Relataram a Moisés e disseram: Fomos à terra a que nos enviaste; e, verdadeiramente, mana leite e mel; este é o fruto dela. 28 O povo, porém, que habita nessa terra é poderoso, e as cidades, mui grandes e fortificadas; também vimos ali os filhos de Anaque. 29 Os amalequitas habitam na terra do Neguebe; os heteus, os jebuseus e os amorreus habitam na montanha; os cananeus habitam ao pé do mar e pela ribeira do Jordão. 30 Então, Calebe fez calar o povo perante Moisés e disse: Eia! Subamos e possuamos a terra, porque, certamente, prevaleceremos contra ela. 31 Porém os homens que com ele tinham subido disseram: Não poderemos subir contra aquele povo, porque é mais forte do que nós. 32 E, diante dos filhos de Israel, infamaram a terra que haviam espiado, dizendo: A terra pelo meio da qual passamos a espiar é terra que devora os seus moradores; e todo o povo que vimos nela são homens de grande estatura. 33 Também vimos ali gigantes (os filhos de Anaque são descendentes de gigantes), e éramos, aos nossos próprios olhos, como gafanhotos e assim também o éramos aos seus olhos (Números 13 – ARA).

Os dez espias incrédulos infamaram a terra que tinham ido inspecionar, isto é, apesar de ter constatado a fartura e fertilidade da terra, exageraram os aspectos negativos de seu relato para fazer deliberadamente com que o povo retrocedesse, o que chegou ao ponto de fazer com que eles chorassem e gritassem em alta voz e murmurassem contra Moisés e Arão, tendo praguejado contra Deus e decidido por conta própria levantar um líder sobre si para voltar ao Egito, desconsiderando por completo a autoridade dos líderes que o Senhor tinha estabelecido sobre eles, bem como as promessas de êxito na conquista da terra (Nm 14:1-4).
O povo foi exortado, através de Josué e Calebe, a mudar de postura, arrepender-se de sua rebeldia e confiar na Palavra de Deus, mas eles endureceram o coração e decidiram apedrejá-los, pelo que a ira do Senhor se acendeu e, após a intercessão de Moisés em favor deles, decidiu não mais riscá-los do mapa, mas os castigou com a sentença de que não entrariam na terra prometida e com a morte dos dez espias incrédulos por meio de uma praga, a exceção de Josué e Calebe, que obedeceram e foram agraciados por Deus (Nm 14:5-24).
            O que tem nos impedido de conquistar a nossa terra prometida, uma alma próspera, uma vida em abundância na presença de Deus? Esta é uma pergunta que cada um de nós tem de responder diante do Senhor e confessar humildemente a Ele para recebermos graça e misericórdia em arrependimento. As Escrituras são bem claras em apontar os motivos pelos quais os hebreus da primeira geração do Êxodo não herdaram a terra prometida:

1 Ora, irmãos, não quero que ignoreis que nossos pais estiveram todos sob a nuvem, e todos passaram pelo mar, 2 tendo sido todos batizados, assim na nuvem como no mar, com respeito a Moisés. 3 Todos eles comeram de um só manjar espiritual 4 e beberam da mesma fonte espiritual; porque bebiam de uma pedra espiritual que os seguia. E a pedra era Cristo. 5 Entretanto, Deus não se agradou da maioria deles, razão por que ficaram prostrados no deserto. 6 Ora, estas coisas se tornaram exemplos para nós, a fim de que não cobicemos as coisas más, como eles cobiçaram. 7 Não vos façais, pois, idólatras, como alguns deles; porquanto está escrito: O povo assentou-se para comer e beber e levantou-se para divertir-se. 8 E não pratiquemos imoralidade, como alguns deles o fizeram, e caíram, num só dia, vinte e três mil. 9 Não ponhamos o Senhor à prova, como alguns deles já fizeram e pereceram pelas mordeduras das serpentes. 10 Nem murmureis, como alguns deles murmuraram e foram destruídos pelo exterminador. 11 Estas coisas lhes sobrevieram como exemplos e foram escritas para advertência nossa, de nós outros sobre quem os fins dos séculos têm chegado (I Coríntios 10 – ARA, grifos nossos).

12 Tende cuidado, irmãos, jamais aconteça haver em qualquer de vós perverso coração de incredulidade que vos afaste do Deus vivo; 13 pelo contrário, exortai-vos mutuamente cada dia, durante o tempo que se chama Hoje, a fim de que nenhum de vós seja endurecido pelo engano do pecado. 14 Porque nos temos tornado participantes de Cristo, se, de fato, guardarmos firme, até ao fim, a confiança que, desde o princípio, tivemos. 15 Enquanto se diz: Hoje, se ouvirdes a sua voz, não endureçais o vosso coração, como foi na provocação. 16 Ora, quais os que, tendo ouvido, se rebelaram? Não foram, de fato, todos os que saíram do Egito por intermédio de Moisés? 3:17 E contra quem se indignou por quarenta anos? Não foi contra os que pecaram, cujos cadáveres caíram no deserto? 18 E contra quem jurou que não entrariam no seu descanso, senão contra os que foram desobedientes? 19 Vemos, pois, que não puderam entrar por causa da incredulidade (Hebreus 3 – ARA, grifos nossos).

Você, meu leitor, pode ver alguma semelhança com coisas que têm bloqueado a sua vida espiritual?
Não há remédio para os rebeldes e soberbos, mas, para os sinceros e humildes, que, apesar de tropeçar e cair várias vezes, estão sempre se arrependendo, levantando e continuando a sua trajetória no amor e no temor de Deus, a estes o Senhor concederá graça para se restaurarem das mazelas do pecado e da iniquidade.
            A despeito de todos os pecados ressaltados nos textos transcritos acima, a Bíblia é enfática em afirmar que eles não entraram no descanso do Senhor por causa da incredulidade.
            Uma forma, às vezes muito sutil, de incredulidade são os argumentos do “não posso” e do “não consigo”, como os dez espias incrédulos disseram ao povo no deserto: “Não poderemos subir contra aquele povo, porque é mais forte do que nós” (Nm 13:31). Os argumentos do “não posso” e do “não consigo” são fortalezas espirituais (ou fortalezas de mente) e necessitam ser derrubadas, uma vez que depreciam a obra de Cristo na cruz e deixam a mente cativa na incredulidade e em padrões de pensamento negativo que negam o poder e a glória de Deus.
            Cuidado com os “não posso” e “não consigo” que você tem pensado e dito e comece a falar a verdade consigo mesmo: “Tudo posso naquele que me fortalece” (Fp 4:13). Perceba o estrago que um “não posso” causou na vida dos israelitas e que, de igual modo, pode arruinar a sua vida e impedi-lo de tomar posse das realidades mais profundas na presença de Deus.
            Onde você tem falado “não posso” e “não consigo”?
            Creia, porque Deus é poderoso e fiel para cumprir aquilo que Ele prometeu e, se você crer, verá a glória de Deus. 
            Outra questão que quero ressaltar, com base nos textos acima citados, é o poder de sabotagem do comodismo e do medo. Muitas vezes, ficamos enchendo o nosso coração com os “não posso” e “não consigo” e nos autodepreciando, andando em círculos no deserto porque não acreditamos no nosso próprio potencial de mudança e no poder transformador do Espírito Santo e, por via de consequência, acabamos por não avançar na vida e não conquistar o melhor que Deus tem para nós por causa do medo do fracasso e, pior ainda, colocamos a culpa dos nossos fracassos e inadequações em outros e até mesmo no Senhor, tornando os nossos relacionamentos instáveis e a nossa paz de espírito insustentável e inviável.
            Não espere uma libertação “mágica” do medo. Só há uma maneira de vencer o medo e o comodismo dele decorrente, enfrentando-o. Não imite a conduta dos israelitas; não aja como vítima dos maus tratos de outros, tal como eles comportaram-se por causa da servidão que sofreram no Egito. Mude sua antiga forma de pensar e assuma que você é o único responsável por seus atos e sentimentos; que é você quem se permite deixar a raiva o dominar, porque acredita na mentira de que sua tranquilidade depende da conduta dos outros; a verdade é que nos condicionamos a agir da forma como agimos.
            Precisamos entender que a nossa felicidade se origina de nosso relacionamento com Deus e na sua imutável felicidade, pelo que devemos desenvolver a nossa felicidade pela fé em Jesus, inclusive para superar a dor, tal como Paulo e Silas que estavam enclausurados em uma prisão, mas estavam alegres e louvando ao Senhor, não atrelando a sua felicidade às circunstancias que os cercavam (At 16). Felicidade é uma questão de fé; a nossa felicidade ou infelicidade está em nossas mãos, é uma decisão nossa. As pessoas podem até ter praticado algo reprovável diante da lei de Deus contra nós, mas nós somos os únicos responsáveis pela forma como nos condicionamos a absorver as coisas e a reagir diante do que fizeram conosco. Pense com cuidado: a maioria das situações de nossa vida está sob nosso controle e podemos mudá-las, bem como podemos suportar todas as consequências da decisão de mudar.
            A mudança é possível e a Bíblia está repleta de exemplos de pessoas que acreditam no poder de Deus e venceram. A fé nos coloca em contato com o poder de Deus; ou a exercitamos, ou andaremos em círculos pelo deserto e, pior, ficaremos presos no comodismo de situações difíceis e doloridas e correremos o risco de voltar para a habitualidade e compulsividade das velhas práticas do pecado, do estilo de vida do Egito, como uma forma de fuga da dor e do desconforto de ter de lidar com as dificuldades da vida.
Não dê ouvidos àqueles que tentam lhe desanimar; não acredite em relatos negativos e exagerados. “Não temais os que matam o corpo e não podem matar a alma; temei, antes, aquele que pode fazer perecer no inferno tanto a alma como o corpo” (Mateus 10:28); foi isso o que a primeira geração de hebreus saídos do Egito não observou em relação aos dez espias incrédulos e, por isso, pereceram.
            Você tem medo de perder e/ou ser rejeitado pelos fracassos?
            Então, observe atentamente o que disse o apóstolo Paulo a respeito do que se pode considerar como perda e lucro:

Sim, deveras considero tudo como perda, por causa da sublimidade do conhecimento de Cristo Jesus, meu Senhor; por amor do qual perdi todas as coisas e as considero como refugo, para ganhar a Cristo (Filipenses 3:8 - ARA).

6 De fato, grande fonte de lucro é a piedade com o contentamento. 7 Porque nada temos trazido para o mundo, nem coisa alguma podemos levar dele. 8 Tendo sustento e com que nos vestir, estejamos contentes. 9 Ora, os que querem ficar ricos caem em tentação, e cilada, e em muitas concupiscências insensatas e perniciosas, as quais afogam os homens na ruína e perdição. 10 Porque o amor do dinheiro é raiz de todos os males; e alguns, nessa cobiça, se desviaram da fé e a si mesmos se atormentaram com muitas dores. 11 Tu, porém, ó homem de Deus, foge destas coisas; antes, segue a justiça, a piedade, a fé, o amor, a constância, a mansidão. 12 Combate o bom combate da fé. Toma posse da vida eterna, para a qual também foste chamado e de que fizeste a boa confissão perante muitas testemunhas (1 Timóteo 6 – ARA).
           
            O apóstolo Paulo estava disposto a arriscar tudo e ter como lucro a vida de piedade em Cristo; se não corrermos riscos, não perdoaremos ninguém e não amaremos ninguém, não avançaremos e ficaremos isolados pelo medo. Josué e Calebe correram todos os riscos, inclusive o de perder a vida na batalha contra os inimigos, para conquistar a terra prometida e venceram e foram galardoados pelo Senhor (cf. BACKUS, William; CHAPIAN, Marie. Fale a Verdade Consigo Mesmo. 2 ed. Venda Nova: Betânia, 2000, p. 134-162).
            As perdas não são o fim do mundo, o que não significa que sejam fáceis. A verdade é que, embora doloridas, são apenas desagradáveis e difíceis, mas nunca insuperáveis. Nas mãos de Deus, as perdas cumprem o propósito de ser uma porta de acesso para uma vida de valores ainda mais elevados na presença do Senhor. Podemos perder tudo, mas não devemos perder Deus. A decisão é nossa. Você também pode; acredite, confie em Deus e viva uma vida abundante na presença do Senhor.

  

Pablo Luiz Rodrigues Ferreira
pablolrferreira@hotmail.com
rugidodaverdade.blogspot.com


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