sábado, 24 de março de 2012

DE ESCRAVO A FILHO: REFLEXÕES NA EPÍSTOLA DE PAULO A FILEMOM CONCERNENTES AO PERDÃO E A GRAÇA ABUNDANTE DE DEUS NA RESTAURAÇÃO DO HOMEM

 


1 Paulo, prisioneiro de Cristo Jesus, e o irmão Timóteo, ao amado Filemom, também nosso colaborador, 2 e à irmã Áfia, e a Arquipo, nosso companheiro de lutas, e à igreja que está em tua casa, 3 graça e paz a vós outros, da parte de Deus, nosso Pai, e do Senhor Jesus Cristo. 4 Dou graças ao meu Deus, lembrando-me, sempre, de ti nas minhas orações, 5 estando ciente do teu amor e da fé que tens para com o Senhor Jesus e todos os santos, 6 para que a comunhão da tua fé se torne eficiente no pleno conhecimento de todo bem que há em nós, para com Cristo. 7 Pois, irmão, tive grande alegria e conforto no teu amor, porquanto o coração dos santos tem sido reanimado por teu intermédio. 8 Pois bem, ainda que eu sinta plena liberdade em Cristo para te ordenar o que convém, 9 prefiro, todavia, solicitar em nome do amor, sendo o que sou, Paulo, o velho e, agora, até prisioneiro de Cristo Jesus; 10 sim, solicito-te em favor de meu filho Onésimo, que gerei entre algemas. 11 Ele, antes, te foi inútil; atualmente, porém, é útil, a ti e a mim. 12 Eu to envio de volta em pessoa, quero dizer, o meu próprio coração. 13 Eu queria conservá-lo comigo mesmo para, em teu lugar, me servir nas algemas que carrego por causa do evangelho; 14 nada, porém, quis fazer sem o teu consentimento, para que a tua bondade não venha a ser como que por obrigação, mas de livre vontade. 15 Pois acredito que ele veio a ser afastado de ti temporariamente, a fim de que o recebas para sempre, 16 não como escravo; antes, muito acima de escravo, como irmão caríssimo, especialmente de mim e, com maior razão, de ti, quer na carne, quer no Senhor. 17 Se, portanto, me consideras companheiro, recebe-o, como se fosse a mim mesmo. 18 E, se algum dano te fez ou se te deve alguma coisa, lança tudo em minha conta. 19 Eu, Paulo, de próprio punho, o escrevo: Eu pagarei - para não te alegar que também tu me deves até a ti mesmo. 20 Sim, irmão, que eu receba de ti, no Senhor, este benefício. Reanima-me o coração em Cristo. 21 Certo, como estou, da tua obediência, eu te escrevo, sabendo que farás mais do que estou pedindo. 22 E, ao mesmo tempo, prepara-me também pousada, pois espero que, por vossas orações, vos serei restituído. 23 Saúdam-te Epafras, prisioneiro comigo, em Cristo Jesus, 24 Marcos, Aristarco, Demas e Lucas, meus cooperadores. 25 A graça do Senhor Jesus Cristo seja com o vosso espírito (Epístola de Paulo a Filemom – Versão Almeida Atualizada – ARA).

I) INTRODUÇÃO E DELIMITAÇÃO DO OBJETO DE ABORDAGEM
A Bíblia, como a Palavra de Deus, não se reduz a um conjunto de verdades que demandam de nós tão somente uma adesão ou concordância intelectual, mas é, sobretudo, um conjunto de princípios de razão prática, isto é, que dizem respeito a nossa conduta e que, portanto, exortam-nos a desenvolver na prática diária comportamentos em conformidade com a essência de Deus, um caminho de santidade, de fidelidade e amor, a fim de que possamos cumprir o nosso chamado em todos os seus aspectos, notadamente o de refletir a glória do Senhor.
A maioria das epístolas que o apóstolo Paulo escreveu visa dar suporte teórico nas verdades fundamentais da fé e princípios práticos de vida cristã com a finalidade de instruir o povo de Deus nas verdades que devem seguir, bem como combater e corrigir os ensinos e heresias dos falsos mestres.
A carta de Paulo a Filemom é diferente. É uma carta pessoal, uma carta entre amigos e irmãos de fé para resolver uma situação concreta. Filemom era um cristão, dono de escravos, possivelmente um dos frutos do ministério do apóstolo Paulo. Ele tinha um escravo chamado Onésimo, que havia fugido, tendo este encontrado o apóstolo Paulo, que estava na cadeia, provavelmente com a finalidade de buscar amparo e proteção. Durante esta visita na prisão, um milagre aconteceu, Onésimo foi convertido pelo Espírito Santo, sendo Paulo o vaso usado por Deus para tanto, tendo o apóstolo não somente pregado para ele, como também se afeiçoado ao mesmo. Paulo, agora com um filho espiritual, escreve a epístola para que Filemom receba Onésimo de volta, agora como irmão em Cristo, perdoando-lhe as ofensas da mesma forma que Deus havia lhe perdoado, não o castigando pela sua fuga rebelde, mas acolhendo em amor.
Este é o pano de fundo.
A seguir, extrair-se-ão alguns princípios fundamentais para as nossas vidas que a epístola contém.
II) PERDÃO: A PORTA DE ENTRADA DO REINO DE DEUS  
         Com a conversão de Onésimo, tanto Paulo quanto Filemom tinham acabado de ganhar um novo membro na família de Deus, não mais um escravo, mas um irmão amado (v. 16).
         Diante da nova situação, agora arrependido de seus atos, Onésimo teria de trilhar o caminho de volta para seu senhor Filemom e acertar as suas pendências com ele.
         Onésimo era um escravo fugitivo e, como tal, merecia a devida punição por sua rebeldia e desobediência; ao voltar, o escravo fugido poderia ser surrado e/ou mesmo submetido a trabalhos ainda mais intensos de modo que sua expectativa de vida seria reduzida (cf. Bíblia de Estudo de Genebra. São Paulo: Cultura Cristã, 2009, p. 1641).
         Paulo, sabedor de todas essas circunstâncias, solicita que seu amigo Filemom perdoe toda a transgressão praticada por Onésimo, recebendo-o como um irmão em Cristo. Ele sabia que podia confiar na bondade de Filemom; sabia que o mesmo era um cristão genuíno, conhecido entre os irmãos na fé como alguém marcado pelo amor de Deus e canal deste amor na vida de muitos, a ponto do apóstolo dizer que o seu coração tinha grande alegria e conforto no amor de Filemom, porque através dele o coração dos santos tinha sido reanimado (v. 7). Paulo tinha plena convicção de que, da mesma forma como Filemom tinha recebido o amor e o perdão, poderia solicitar a este que agisse de igual modo com Onésimo, perdoando-o de forma voluntária e sem reservas. 
         A situação retratada acima é muito semelhante ao quadro em que nos encontramos quando recebemos Jesus como nosso Salvador e Senhor. Antes escravos do pecado, andávamos segundo as paixões deste mundo e de acordo com a nossa rebeldia e, agora, reconciliados com o Pai através do arrependimento e da fé, fomos perdoados das nossas transgressões, através do sacrifício de Jesus, recebidos como filhos de Deus, daí em diante tendo o chamado de refletir o caráter dEle, desempenhando o ministério da reconciliação (2 Co 5:17-19).
         Essa é a grande porta do Reino de Deus: o perdão. Só podemos herdar a salvação por que o próprio Deus em sua soberana vontade concede-nos o perdão dos pecados através da cruz quando trilhamos no caminho do arrependimento e da fé.
         E, da mesma forma que fomos aceitos e perdoados, Deus assim nos ordena que perdoemos as ofensas contra nós cometidas, a fim de que possamos desfrutar da benção de relacionamentos restaurados com Deus, com os outros e conosco. É isto que, em essência, o apóstolo Paulo pede a Filemom que faça com Onésimo. É tratar o outro com a mesma graça incondicional que recebemos. Este é o primeiro passo que temos de tomar para refletir o caráter de Deus.
III) UMA NOVA IDENTIDADE: DE ESCRAVO PARA FILHO, UM RETRATO DA GRAÇA ABUNDANTE DE DEUS
         Perdoados por Deus, Ele não se contentou neste patamar, mas também nos adotou como filhos (Rm 8:12-17), nós que antes éramos inimigos da cruz de Cristo, agora somos selados com o Espírito Santo da promessa, o qual testemunha com o nosso espírito que somos aceitos por Deus e filhos seus, recebendo do seu amor e da sua graça para viver uma vida abundante.
         Esta é a realidade que as Escrituras nos apontam, contudo, se olharmos para a grande massa da cristandade que nos cerca, concluiremos que a maioria não vive esta abundância de vida, não conseguem ver Deus como um pai amoroso que nos aceita incondicionalmente, nem desfrutam a intimidade do relacionamento com Ele e de relacionamentos saudáveis com o próximo e consigo mesmos, antes nutrem uma vida de vícios, iniquidades e todo tipo de deformidade de caráter (ex: orgulho, soberba, ira, ódio, espírito de competição, inveja, mentiras, fraudes, autocomiseração, fofocas, dissenções, lascívia, perversões e vícios sexuais, vício de querer a aprovação dos outros, depressão, perfeccionismo, etc.).
         Uma das causas para esta situação é justamente a falta de perdão, chamada pelo escritor da epístola aos Hebreus de raiz de amargura. Mas por que a falta de perdão nos afeta de forma tão aguda e drástica a ponto de nós não conseguirmos desenvolver uma identidade forte em Deus para espelhar o seu caráter? Por que a raiz de amargura inviabiliza a transformação do nosso caráter, mantendo intactas as nossas estruturas de pecado e as deformidades do nosso ser, inclusive na área emocional?
         Veja o que dizem as Escrituras:
Segui a paz com todos, e a santificação, sem a qual ninguém verá o Senhor, tendo cuidado de que ninguém se prive da graça de Deus, e de que nenhuma raiz de amargura, brotando, vos perturbe, e por ela muitos se contaminem; e ninguém seja devasso, ou profano como Esaú, que por uma simples refeição vendeu o seu direito de primogenitura (Hebreus 12:14-16 – Almeida Revista e Corrigida - ARC) (grifo nosso).
         O texto nos exorta a prosseguir com a santificação e mostra algumas coisas que devemos lançar fora para que o desenvolvimento da mesma não seja bloqueado, a fim de que não sejamos separados da graça de Deus, e uma delas é a raiz de amargura.
         Toda a nossa redenção é um ato da graça de Deus, do seu favor imerecido e incondicional, ou seja, o novo nascimento, o perdão dos nossos pecados, a adoção como filhos de Deus, a nossa herança no Senhor, a nossa justificação, santificação, cura, libertação, renovação da mente, a nossa perseverança. A graça de Deus, portanto, é o alicerce que sustenta toda a nossa vida como cristãos, a transformação do nosso caráter, a paz com Deus. A graça é o alicerce da construção da nossa identidade cristã e, quando a raiz de amargura se instala em nosso ser, ela nos separa da graça de Deus e, mantendo-a em nós, jogamos fora a nossa própria identidade, comprometendo todo o nosso processo de crescimento espiritual. Tornamo-nos uma “igreja com máculas e rugas” e não “uma noiva adornada”.
         A raiz de amargura nos impede de chegar ao patamar da identidade de filho, que é baseado na graça, e ficamos ainda atolados na identidade de escravo, que é fruto da desgraça.
         Tal como Onésimo, que passou de escravo para a condição de filho, Deus quer que nos tornemos filhos seus, abandonando toda a identidade de escravo do pecado, do mundo, da carne, do diabo e de si mesmo. E, da mesma forma que Deus perdoou Onésimo como um ato de graça, Ele queria que seu agora irmão, Filemom, tratasse-o com a mesma dignidade e misericórdia que tinha alcançado diante do Pai.
         Quer construir uma identidade forte no Senhor? O primeiro passo é fazer do perdão um estilo de vida. 
IV) A VOLUNTARIEDADE DO AMOR E OS INGREDIENTES IMPORTANTES AO PERDÃO
         Paulo poderia ter se utilizado da sua posição como apóstolo do Senhor para exigir que Filemom tomasse a atitude correta em direção a Onésimo, mas preferiu que seu amigo tomasse a decisão certa “em nome do amor” (vv. 8-9), que é a própria essência da graça de Deus.
         Isto também se aplica a nós. O perdão não é uma questão de obrigação, mas um ato de livre vontade (v. 14) e não de sentimentos em relação ao ofensor. Não tenho de perdoar só quando sentir que tenho que perdoar, até porque este dia nunca chegará, mas é uma decisão motivada pela Verdade do Evangelho, tal como o apóstolo Paulo fez questão de esclarecer a Filemom, qual seja a verdade de que este último deveria decidir em prol do amor, a verdade de que Onésimo, antes ofensor, agora é tão filho do Senhor quanto ele. E, ainda que a pessoa que tenhamos de perdoar não seja nosso irmão na fé, devemos fazê-lo para preservar o nosso relacionamento com Deus, bem como para que não nos falte amor e graça para cultivar um relacionamento saudável com o nosso diálogo interior (paz interior) e com as pessoas, já que transferimos para os nossos semelhantes os nossos conflitos interiores não resolvidos, ou melhor, como diz o escritor de Hebreus, seremos perturbados com a raiz de amargura e poderemos vir a contaminar muitos com ela, além do que perdoar as agressões injustas foi o exemplo no nosso Salvador na cruz, o qual clamou: “Pai, perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem” (Lc 23:34).
         Fixado o perdão como ato de vontade, a seguir delinear-se-ão alguns ingredientes fundamentais quanto ao conteúdo deste ato:
a)    Perdão é o cancelamento de uma dívida. Atente para o que as Escrituras nos dizem a respeito do perdão que Deus nos concede através da obra de Jesus na cruz: “Tendo cancelado o escrito de dívida que era contra nós e que constava de ordenanças, o qual nos era prejudicial, removeu-o inteiramente, encravando-o na cruz” (Cl 2:14 – King James Atualizada em português - KJA). Jesus cancelou a dívida do pecado que era contra nós, bem como a maldição e a condenação dele decorrente; Deus nos convoca a perdoarmos, cancelando as dívidas dos outros contra nós, da mesma forma com que Ele nos trata. Neste sentido trago à colação o seguinte ensinamento:

A palavra grega no Novo Testamento para perdão, aphesis, significa “perdão, cancelamento de uma obrigação, punição ou dívida”. Perdoar é alguém cancelar a dívida de outra pessoa. Na vida prática, uma ofensa não perdoada, é uma dívida não paga – uma dívida emocional, psicológica e até mesmo espiritual entre duas pessoas. Assim, a falta de perdão é um elo que ata duas pessoas. Nenhuma está livre dele.
Quando perdoamos, não somente cancelamos a dívida que nos é de direito, mas também confiamos que Deus cuidará do ofensor em Seu tempo e da maneira que achar melhor. Ele nos assegura: “Minha é a vingança; eu retribuirei” (Rm 12:19) (HUNT, June. Aprenda a perdoar mesmo quando não tem vontade. Rio de Janeiro: Propósito Eterno, 2009, p. 38).
  
b)    Mais algumas definições e ideias importantes a respeito do perdão: (i) Perdoar é reconhecer que só Deus tem o direito de julgar as ofensas; (ii) é desativar o mecanismo de violência dentro e fora de nós; (iii) é reconhecer as próprias imperfeições, falhas e pecados; (iv) é ser grato com o perdão que Deus já nos deu; (v) é repetir com o próximo o que Deus já fez por nós; (vi) é oferecer amor quando não há motivo para amar; (vii) é manter abertos os canais por onde flui o amor e a confiança incondicionais em relação ao nosso relacionamento com Deus, com o próximo e conosco; (viii) é uma reação positiva a ofensa, ao invés de uma reação negativa contra o ofensor; (ix) é a decisão de não levantar a questão diante de três pessoas: Deus, o próximo e a nós mesmos; (x) é semear misericórdia, graça e amor: “Falai e procedei com todos, como quem haverá de ser julgado pela lei da liberdade; pois será exercido juízo sem misericórdia sobre quem também não usou de compaixão. A graça triunfa sobre o juízo” (Tg 2:12-13 - KJA); (xi) é ter as emoções conquistadas; (xii) é deixar livre, soltar, despedir; (xiii) é atribuir favor incondicional ao ofensor, “desligando-se” emocionalmente dele e jogando o lixo emocional fora (obs: estas ideias eu colhi de uma pregação que ouvi na Estância Paraíso, Ministério de Intercessão – Igreja Batista da Lagoinha, em 2010, no programa Moriá, proferida pelo pastor Joaquim Arnaldo).

c)     Perdão é um ato que só pode ser concretizado através da cruz de Cristo. Perdoar é divino e não humano, é um ato de graça e não uma questão de justiça ou retribuição e, para isso, precisamos estar dispostos a passar pela nossa cruz e negarmos a nós mesmos. Retirar a raiz de amargura requer de nós os mesmos ingredientes que Cristo manifestou na cruz, quais sejam a humilhação (Is 57:15; 2 Cr 7:14); a confissão de nossos pecados uns aos outros para que possamos receber cura (Tg 5:16); o arrependimento dos pecados, do orgulho ferido da vítima e da nossa justiça própria (At 5:31); renúncia dos nossos “direitos” e razões pessoais (1 Jo 4:9); perdão como forma de cancelamento das ofensas praticadas contra nós (Cl 3:13); reconciliação e restauração dos relacionamentos partidos (2 Co 5:18-19); a restituição daquilo que roubamos e tiramos do outro (Lc 19:8, Lc 6:1-5), porém, às vezes, essa restituição precisa ser emocional, ou seja, temos também pedir perdão na parte em que também fomos ofensores; a intercessão (1 Tm 1-4); a disciplina da obediência, a qual é baseada no temor de Deus e na decisão de amar o que Ele ama e aborrecer o que Ele aborrece, perseverando em construir um caráter à luz dos padrões do Senhor revelados em sua Palavra; além do descanso que devemos depositar no Senhor na decisão de nos rendermos diante dEle e entregar a situação da ofensa em sua mãos (para mais detalhes, consultar BORGES, Marcos de Souza. Pastoreamento Inteligente: o padrão de aconselhamento na libertação. 2 ed. Almirante Tamandaré: Editora Jocum Brasil, 2011, p. 173- 212). Temos de olhar a ofensa como permitida por Deus para o nosso bem, para o nosso aperfeiçoamento, uma vez que todas as coisas cooperam para o bem daqueles que amam a Deus (Rm 8:28), até mesmo porque a graça de Deus também inclui não só o privilégio de crer em Cristo, mas também de padecer pela causa do Evangelho (Fp 1:29); acrescentando-se que devemos olhar positivamente o ofensor como instrumento de Deus para nos aperfeiçoar, assim como Jesus, que foi aperfeiçoado através dos sofrimentos e provações, para ser o nosso Salvador (Hb 4:14); após a ofensa, entregue-se diante de Deus, depositando a confiança de que Ele tratará da ofensa e do ofensor em seu tempo e não no nosso.
d)   Como referido acima, uma das chaves do perdão das ofensas é a intercessão, isto é, neste caso, orar pelo nosso ofensor. Em Mateus 5:44-48, Jesus diz:
Mas eu vos digo: Amai a vossos inimigos, bendizei aos que os maldizem, fazei bem aos que vos aborrecem, e orai pelos que vos ultrajam e os perseguem; para que sejais filhos de vosso Pai que está nos céus, que faz sair seu sol sobre maus e bons, e que faz chover sobre justos e injustos. Porque se amais aos que vos amam, que recompensa tereis? Não fazem também o mesmo os publicanos? E se saudais a vossos irmãos somente, que fazeis de mais? Não fazem também assim os gentios? Sede, pois, vós perfeitos, como vosso Pai que está nos céus é perfeito (Versão Reina-Valera de 1960, traduzido livremente do espanhol) (grifo nosso).

Aqui vemos como nossos pensamentos realmente não são os pensamentos de Deus e como Ele costuma nos pedir coisas que são contrárias a mentalidade humana carnal e distorcida pelo pecado. A intenção do texto acima citado não é que oremos para que o nosso ofensor receba bênçãos, mas que oremos para que ele seja alcançado pela graça de Deus, seja para que receba o dom gratuito da salvação, seja para que, se crente for, receba o quebrantamento quem vem do Espírito Santo a fim de receber a transformação em seu caráter, gerando crescimento, maturidade e libertação do engano do inimigo, bem como para que Deus trate da situação em Seu tempo e da Sua forma. Deus quer que vejamos não os erros cometidos, mas a necessidade do ofensor de receber a graça de Deus para a sua salvação ou restauração e, assim fazendo, o Espírito Santo transforma o ódio em amor, mudando a nossa mente, produzindo misericórdia e compaixão em nosso coração. Trata-se, portanto, de ver a ofensa e o ofensor da perspectiva de Deus e não da nossa, a fim de nos protegermos da raiz de amargura e quebrar o poder que a ofensa tem de determinar nossos pensamentos, reações e comportamentos. Quando não oramos pelo nosso ofensor, damos poder a ele, permitindo que nossas ações sejam moldadas pela ofensa que ele praticou (cf. HUNT, June, Op. cit., p. 146-150).
O texto nos exorta a praticar a postura acima descrita em Mt 5:44-48 para que sejamos, de fato, filhos de Deus e perfeitos, como perfeito é nosso Pai celestial. A palavra grega “teleios”, traduzida como “perfeito” não está aqui no sentido de “sem defeitos”, mas no sentido de “maduro”, “aperfeiçoado”, “completo”, “adulto e maduro na mente, no entendimento, no conhecimento da verdade, na fé e na virtude cristã”, bem como a palavra “huios” traduzida como “filho” é a palavra para descrever o “filho maduro e adulto” (cf. Bíblia de Estudo Palavras-Chave. São Paulo: CPAD, 2011, p. 2422-2423 e 2434-2435), o que reforça ainda mais o argumento de que as ofensas e tribulações desta vida são um meio de Deus usa e permite que aconteça com a finalidade de cumprir os seus propósitos em nós e maturar e transformar o nosso caráter para que sejamos pacificadores, porque estes são chamados de filhos de Deus (Mt 5:9), além de chegarmos a maturidade no amor, que é o vínculo da perfeição (Cl 3:14), sendo sabedores que o crente precisa continuar semeando, suportando provações e perseguições e que o Pai é galardoador, recompensador daqueles que o buscam, bem como que o céu vindouro é o único lugar em que as injustiças e inadequações serão corrigidas.
e)     Perdoar é um processo que exige de nós sinceridade o suficiente para definirmos a ofensa praticada, bem como a extensão do dano causado. Precisamos definir a ofensa, bem como examinarmos as mágoas específicas resultantes, além de nos dispormos a abandonarmos os sentimentos feridos. Temos de enfrentar esses sentimentos feridos, admitindo-os e não tentando explicá-los ou racionalizá-los, já que explicar não é o mesmo que perdoar. Aqui temos de tomar o cuidado com a falsa ideia de que para perdoar precisamos “necessariamente” confessar os nossos sentimentos negativos diretamente ao nosso ofensor, pois muitas vezes, utilizando-se deste pretexto, escondemos a vontade de nos vingarmos do ofensor, fazendo com que ele se sinta mal pelo que praticou, causando-lhe dor e sofrimento. Acrescente-se que perdão e reconciliação não são coisas idênticas; o perdão é unilateral, é um ato de decisão que depende unicamente do ofendido em renunciar a ofensa; a reconciliação é bilateral, ou seja, é um ato de vontade que depende tanto do ofendido quanto do ofensor em restaurar o relacionamento, o que nem sempre é possível, porque pode ser que não haja condições de relacionamento concreto com o ofensor, contudo, Deus nos pede que perdoemos e entreguemos a Ele a nossa completa disposição para nos reconciliar e a hora exata da reconciliação pertence a Ele (cf. SEAMANDS, David. A Cura das Memórias. São Paulo: Mundo Cristão, 2007, p. 130-131).
f)      Perdoar requer de nós que assumamos a responsabilidade por nossas decisões e atos, tal como a renúncia de usar a ofensa como uma “desculpa” ou “justificativa” para os nossos fracassos. O apóstolo Paulo tinha a consciência de que as coisas velhas tinham de ficar para trás, uma vez que tomamos a decisão de estar em Cristo e de ser uma nova criatura (2 Co 5:17), mas as coisas só são, de fato, “velhas” quando tomamos a decisão de assim as tratar, renunciando-as, inclusive através do perdão. Perdoar nos tira da posição de vítima e nos faz assumir a nossa responsabilidade pelas nossas decisões e erros. Temos que nos dispor a sair da cadeira da vítima, o que é o mais difícil em todo o processo, e decidirmos ser sobreviventes da ofensa e não dizermos assim: “eu estou nessa situação por causa da ofensa contra mim cometida”, “se isso não tivesse acontecido comigo, eu seria uma pessoa feliz e realizada”, “fracassei, porque isso aconteceu comigo”; essas e outras “desculpas” são extremamente perigosas, impedindo-nos de perdoar e acabam funcionando como uma “justificativa” para que não enfrentemos a realidade de quem somos e das áreas que precisamos mudar, mantendo intacta a nossa justiça própria, o orgulho, a autocomiseração (sentimento de sentir pena de si mesmo), o perfeccionismo, os complexos de inferioridade. A dificuldade de perdoar mostra traços claros de perfeccionismo e orgulho e de uma falsa piedade que diz: “você não sabe o quanto é duro viver o nível espiritual que tenho”. A responsabilidade de viver uma vida feliz e plena no Senhor é nossa e precisamos assumi-la e não transferirmos para os outros as nossas responsabilidade e culpas (SEAMANDS, Op. cit., p. 131).
g)    Perdoar envolve a decisão de renunciar ao direito de exigir do ofensor qualquer restituição, isto é, não podemos condicionar o nosso perdão a qualquer expectativa de que o nosso ofensor mude e passe a nos tratar de maneira diferente ou que ele venha a nos dar o amor e respeito que ele deveria ter dado. É se liberar da expectativa de que a dívida seja paga ou que o sonho frustrado venha a se concretizar, deixando de lado qualquer “barganha” que possamos fazer com a ofensa no sentido de podermos perdoar o ofensor se ele nos der uma garantia de que nos tratará bem de agora em diante (cf. SEAMANDS, Op. cit., p. 131-132). Temos de nos livrar de tal expectativa, uma vez que ela se torna um impedimento ao processo de perdão. O ofensor pode nunca mudar em relação a nós e pode continuar praticando as condutas que nos ofenderam, mas isso não pode nos prender emocionalmente; temos de decidir tomar a atitude de nos “desligar” do comportamento pecaminoso do ofensor e entender que é dele a decisão de continuar a viver o seu “inferno interior”; não podemos atrair para nós a responsabilidade pela mudança do ofensor, nem tampouco atrair para nós a “loucura” do outro e vivê-la.
h)    Perdão é um processo de renovação da mente em relação à ofensa cometida contra nós (Rm 12:2). Perdoar é um ato e também um processo. Não existe cura imediata da raiz de amargura, até mesmo porque uma das consequências dela é que, diante da ofensa, acabamos por absorver e interiorizar em nosso coração e mente uma série de pensamentos, conceitos e padrões desviados da vontade de Deus revelada na Bíblia, principalmente quando as ofensas e abusos (físicos, verbais, emocionais e/ou sexuais) aconteceram na infância.

Ao reagirmos às injustiças sofridas, sobretudo quando crianças, criamos hábitos destrutivos de pensamento acerca de nós mesmos. Por exemplo, se seus pais eram exigentes e perfeccionistas, muitas vezes você talvez não tenha conseguido atingir as expectativas que eles alimentavam a seu respeito. Os adultos que tiveram esse tipo de formação, não raro, “programam-se a si mesmos” para o fracasso. Ao determinarem previamente que fracassarão, tentam se proteger do desapontamento. Infelizmente, tais profecias com frequência cumprem-se por si mesmas. Esses padrões negativos de pensamento raramente são exatos e se baseiam na rejeição e no medo. Se pensarmos que somos feios, não apenas sentiremos a nossa feiura, mas também agiremos de acordo com ela (McCLUNG Jr., Floyd. O Imensurável Amor de Deus. São Paulo: Vida, 2006, p. 56).

Temos de prestar atenção ao nosso “diálogo interior” e pedir para que o Espírito Santo nos sonde e nos mostre os falsos conceitos que cultivamos em nossa mente e coração, que impedem o nosso processo de cura das emoções danificadas pela raiz de amargura (Sl 139), a fim de que possamos confessá-los, arrependermo-nos deles e renunciá-los, bem como substituí-los pelas verdades contidas na Palavra de Deus. Nesse processo, é interessante manter um caderno de anotações para que as percepções que Deus nos der possam ser anotadas, bem como anotar as verdades contidas na Palavra que vão desconstruir os falsos conceitos que absorvermos, de modo que possamos cultivar em nós um novo padrão de conduta baseado nos conceitos que as Escrituras trazem (a este respeito, importante é a leitura de BACKUS, William; CHAPIAN, Marie. Fale a Verdade Consigo Mesmo. 2 ed. Venda Nova: Betânia, 2000 - este livro contém uma exposição completa acerca dos falsos conceitos relacionados a depressão, ansiedade, medo, ira, falta de domínio próprio, autodepreciação, entre outros, bem como das verdades da Bíblia que precisamos aprender para o processo de renovação da mente).

i)      Uma palavra para aqueles que passaram por um processo de rejeição e baixa autoestima em decorrência das ofensas recebidas: perdoar envolve ter uma perspectiva realista acerca da ofensa e da dor dela resultante, não a exagerando. Quando a pessoa é ferida emocionalmente e principalmente se isto ocorre através de fatos acontecidos na infância, o inimigo de nossas almas procura construir nela uma perspectiva completamente distorcida da realidade a partir da ofensa, plantando uma raiz de rejeição, o que pode levá-la inclusive a se autodepreciar (complexo de inferioridade), sobretudo se as ofensas foram oriundas dos nossos referenciais de autoridade (ex: pais, professores, líderes, etc.). A pessoa ferida passa então a erguer “muros de proteção emocional” para evitar ser ferida novamente, sendo reservada e condicional em seus relacionamentos, bem como buscando seu sendo de valor com a aprovação dos outros, ou seja, a falta de perdão gera uma mente dividida: honramos ao Senhor, mas queremos o aplauso dos homens, o chamado ânimo dobre (Tg 4:8).
O inimigo planta na mente da pessoa o engano de que a dor da rejeição é horrível, insuportável e impossível de ser superada, a pior coisa que poderia acontecer com alguém. Com certeza, o ser humano foi criado por Deus para desfrutar do amor em sua plenitude, sobretudo no relacionamento com Ele, contudo, por vivermos em um mundo decaído e corrompido pelo pecado, poderemos ser alvo de todo o tipo de ofensa; o que não pode acontecer é a pessoa se permitir perder o seu valor como ser humano criado à imagem de Deus, diante das ofensas contra ela praticadas; a dor da rejeição pode ser forte, mas ela não é a pior coisa que pode acontecer a uma pessoa; a pior coisa que pode acontecer a uma pessoa é ela passar uma existência inteira e a eternidade sem a amorosa presença de Deus; não precisamos ser aceitos, nem receber a aprovação de todos, até porque nem Jesus agradou a todos, muito pelo contrário, Ele foi o mais rejeitado e humilhado de todos (Is 53), principalmente porque toda a sua vida era um ato de adoração a Deus e não uma vida desenvolvida para agradar a todos e nem nós devemos nutrir esta falsa “prisão” de que temos de receber a aprovação de todos para manter o nosso senso de valor.
Portanto, temos de nutrir uma perspectiva realista diante das ofensas, permitindo-nos aceitá-las como um estágio de maturação e aperfeiçoamento do caráter cristão. A dor pode ser aguda, mas ela só é desagradável e não a pior coisa que pode acontecer a alguém, podendo ser suportável e superável; alguém pode ter nos rejeitado ou ferido, o que certamente é desagradável, mas isto não precisa ser o “fim do mundo” para nós; podemos sobreviver e aprender com a experiência e não precisamos da aprovação do outro para nos sentir plenos e inteiros; podemos ser cheios da vida de Deus, recebendo o valor e a aceitação que vem dEle, de forma incondicional, ainda que nem todas as pessoas nos aprovem ou mesmo nos detestem; não podemos nos permitir colocar o nosso senso de valor na mão das outras pessoas, condicionando-o a que o outro nos aceite, senão estaremos dando um trunfo ao inimigo para que ele nos aflija, atormente e torture através das pessoas ao nosso redor, bem como esta é uma das maiores causas de todo um ciclo demoníaco de ansiedade, quando condicionamos o nosso senso de valor em preencher as expectativas dos outros (cf. BACKUS, William; CHAPIAN, Marie. Fale a Verdade Consigo Mesmo. 2 ed. Venda Nova: Betânia, 2000, p. 71-88). Por fim e não menos importante, no tocante ao não buscarmos o nosso senso de aprovação em outras pessoas, temos de desistir da ideia de que as pessoas vivam em função de preencher as nossas expectativas pessoais de realização, uma vez que, caso elas nos desapontem, não atendendo a tais expectativas, bem como aos padrões de comportamento que estabelecemos como “aceitáveis” e “corretos” aos nossos próprios olhos, ficaremos feridos vez por outra com as pessoas e, mais uma vez, estaremos dando ao diabo uma arma para ele nos atormentar e a raiz de amargura não sairá.

j)       Níveis de perdão. O perdão pode ser concedido através dos seguintes meios: (i) perdão em oração: “Mas, quando estiverdes orando, se tiverdes algum ressentimento contra alguma pessoa, perdoai-a, para que, igualmente, vosso Pai celestial vos perdoe as vossas ofensas” (Mc 11:25 - KJA); (ii) restauração do relacionamento rompido: “Assim, sendo, se trouxeres a tua oferta ao altar e te lembrares de que teu irmão tem alguma coisa contra ti, deixa ali mesmo diante do altar a tua oferta, e primeiro vais te reconciliar-te com teu irmão, e depois volta e apresenta a tua oferta” (Mt 5:23-24 - KJA); (iii) através da confrontação: “Se teu irmão pecar contra ti, vai e, em particular com ele, converse sobre a falta que cometeu. Se ele te der ouvidos ganhaste a teu irmão” (Mt 18:15 - KJA).
V) RECONCILIADO PARA RECONCILIAR: DE INÚTIL A ÚTIL
         O nome “Onésimo” significa “útil” e, no versículo 11 da epístola, Paulo fez um jogo de palavras com o nome de Onésimo, dizendo que antes ele era “inútil” como escravo fugido, mas, agora como filho de Deus, reconciliado com o Pai, era “útil”, não só para Filemom, que receberia de volta um irmão em Cristo, mas para o próprio apóstolo Paulo, que queria conservá-lo consigo para o serviço no Evangelho (v. 13).
         De modo semelhante, essa é a nossa realidade, antes inúteis por causa do pecado, mas agora perdoados por Deus e reconciliados com Ele para sermos úteis na causa do Evangelho, como embaixadores do Reino de Deus, recebendo de dEle o ministério da reconciliação, uma verdade que Paulo já enunciou em 2 Co 5:18-21:
Mas todas as coisas provêm de Deus, que nos reconciliou consigo mesmo por Cristo, e nos confiou o ministério da reconciliação; pois que Deus estava em Cristo reconciliando consigo o mundo, não imputando aos homens as suas transgressões; e nos encarregou da palavra da reconciliação. De sorte que somos embaixadores por Cristo, como se Deus por nós vos exortasse. Rogamo-vos, pois, por Cristo que vos reconcilieis com Deus. Àquele que não conheceu pecado, Deus o fez pecado por nós; para que nele fôssemos feitos justiça de Deus (ARC).
         Em Cristo, recebemos não só uma nova vida, mas também uma nova “utilidade”, enfim, recebemos de Deus uma nova dignidade e um novo valor, que excede de forma superabundante todo o nosso histórico anterior de pecado e degradação. Isso é algo que precisamos ter bem guardado em nossa mente e coração e precisamos usar esta verdade a nosso favor como matéria prima para a renovação da nossa mente a fim de mudar toda a nossa autoimagem e autoestima, bem como devemos nutrir em nosso íntimo uma profunda gratidão a Deus por esta obra que só Ele pode fazer em nós, uma vez que fruto da graça, um favor que não merecemos, mas que Ele gratuitamente concedeu em virtude de seu grande amor por nós. Lembre-se:
Sobreveio, porém, a lei para que a ofensa abundasse; mas, onde o pecado abundou, superabundou a graça;  para que, assim como o pecado veio a reinar na morte, assim também viesse a reinar a graça pela justiça para a vida eterna, por Jesus Cristo nosso Senhor (Rm 5:20-21 – ARC).
         Leitor, qual tem sido a sua postura diante de Deus em relação à tão grande salvação recebida? Isso mudou a forma como você se vê e como você se valoriza? Você vive esta graça nutrindo um coração grato? Esta graça lhe incentiva a mudar e a buscar relacionamentos saudáveis e dividir a graça recebida?
V) QUEM AMA INTERCEDE: A COMPAIXÃO
         A carta de Paulo a Filemom é uma situação concreta de intercessão, em que Paulo pleiteou a situação de Onésimo diante de Filemom, a fim de que este o recebesse e o tratasse com a mesma graça recebida diante de Deus.
         Outra obra de intercessão que o apóstolo Paulo realizou, movido pela compaixão, foi a de “gerar” Onésimo como filho de Deus, sendo usado pelo Senhor como canal para trazer vida para aquele que estava morto espiritualmente em seus delitos e pecados. Essa é uma figura que o apóstolo utilizou também em Gálatas 4:19:
Meus filhos, por quem, de novo, sofro as dores de parto, até ser Cristo formado em vós (ARA).
         Paulo, assim procedendo, cumpriu a mesma missão de Jesus em nosso favor, já que Cristo é o nosso intercessor diante do Pai, intercessão esta que continua nos dias de hoje e se estenderá até a consumação dos séculos (Rm 8:34; Hb 7:25), sendo Ele o nosso advogado diante do Pai:
Se confessarmos os nossos pecados, ele é fiel e justo para nos perdoar os pecados e nos purificar de toda injustiça. Se dissermos que não temos cometido pecado, fazemo-lo mentiroso, e a sua palavra não está em nós. Meus filhinhos, estas coisas vos escrevo, para que não pequeis; mas, se alguém pecar, temos um Advogado para com o Pai, Jesus Cristo, o justo. E ele é a propiciação pelos nossos pecados, e não somente pelos nossos, mas também pelos de todo o mundo (1 Jo 1:9-10 e 2:1-2 – ARC).
         Filemom também era conhecido como alguém marcado pelo amor de Deus e conhecido como canal de fortalecimento da fé dos irmãos em Cristo (vv. 4-7).
A obra de intercessão exigiu do nosso salvador a compaixão pela nossa miséria em razão da condenação e morte causada pelo pecado que há em nós e, da mesma forma, Jesus espera de nós que desempenhemos este papel de intercessores, sendo um canal de graça para os perdidos sem Deus, bem como que desempenhemos o papel de fortalecedores e cooperadores da fé dos nossos irmãos, seja orando, aconselhando, pregando, exortando, ajudando ou desempenhando algum serviço que o Senhor nos confiou para fazer, já que esta é a essência do Reino de Deus, qual seja o de multiplicar o amor, a compaixão e a graça recebida, transformando uma realidade antes degradada pelo pecado e, nessa obra de intercessão, estaremos aptos a cada dia estarmos mais perto daquilo que o Pai sente por nós.
VI) QUEM AMA TUDO SUPORTA, TUDO ESPERA, TUDO CRÊ: QUEREMOS ESTAR SEMPRE COM A RAZÃO OU TER RELACIONAMENTO?
         Pelo exposto até este ponto, pode-se perceber que a intenção de Deus para nossas vida é a de que a graça e o amor que recebemos dEle sejam uma força propulsora para a transformação não só da nossa mente, como também da forma de nos relacionarmos com o próximo.
         A realidade dos dias de hoje é que a palavra “amor” está muito desgastada e até mesmo pervertida em sua substância no ideário coletivo da humanidade.
         A marca do verdadeiro amor está em 1 Co 13:4-7:
O amor é sofredor, é benigno; o amor não é invejoso; o amor não se vangloria, não se ensoberbece, não se porta inconvenientemente, não busca os seus próprios interesses, não se irrita, não suspeita mal; não se regozija com a injustiça, mas se regozija com a verdade; tudo sofre, tudo crê, tudo espera, tudo suporta.
         Esta é a essência do amor que Deus quer que tenhamos, qual seja um amor marcado pela “alteridade”, isto é, que não busca a satisfação dos próprios interesses, mas que se alegra com a verdade de Deus, propagando-se por tudo o que tivermos de fazer e com quem quer que tenhamos de nos relacionar a fim de multiplicar a graça recebida dEle.
         A humanidade dos dias de hoje, entretanto, cultiva em seu ideário coletivo distorcido pelo pecado um conceito de amor que busca a própria satisfação em prejuízo do bem-estar do outro, ainda que tenha, a princípio, uma capa de afeto. A Bíblia dá nome a este tipo de sentimento como “lascívia”; “paixão”; “espírito de sensualidade”, que é a idolatria dos próprios sentimentos (Os 4:6-14); todas estas são manifestações do egoísmo, em que as pessoas usam outras para sua própria realização e autoafirmação, até mesmo para preencher as suas carências pessoais, gerando relacionamentos marcados pelo individualismo, falta de tolerância e compreensão, busca pelo prazer desenfreado, possessividade, manipulação e controle, sexo desregrado, impureza, atrofia moral e imaturidade emocional, entre muitas outras distorções (para um aprofundamento destas questões, consulte BORGES, Marcos de Souza. A face oculta do amor: desmascarando o espírito de sensualidade. Almirante Tamandaré: Editora Jocum Brasil, 2008, p. 13-42).
         Paulo nos dá o exemplo nesta epístola a Filemom do verdadeiro amor, tendo gerado Onésimo como filho de Deus, afeiçoando-se e intercedendo por ele, bem como dizendo a Filemom que o recebesse como irmão na fé, buscando de tal forma o bem de Onésimo que chegou a se responsabilizar pelos danos que ele porventura tenha causado a Filemom (v.18). Paulo persuade Filemom a renunciar seus próprios direitos, inclusive o de castigar Onésimo, para ter um novo relacionamento com ele, baseado na graça e no amor de Deus.
         De semelhante modo, também deveremos reestruturar muitos de nossos relacionamentos interpessoais e restaurar relacionamentos partidos, baseando-os em uma mentalidade de graça, renunciando o direito de cobrar pendências e dívidas para ter relacionamentos saudáveis, notadamente os relacionamentos com pai e mãe, irmãos, a fim de que possamos ser libertos da cegueira espiritual causada pela quebra da honra familiar: “Os olhos de quem zomba do pai ou de quem despreza a obediência à sua mãe, corvos no ribeiro os arrancarão e pelos pintãos da águia serão comidos” (Pv 30:17).
         Caro leitor, você prefere estar certo ou ter relacionamento?
         Jesus escolheu ter relacionamento, renunciando os direitos que tinha como Deus, levando sobre ele toda a nossa dívida, pagando a nossa conta, tal como, conforme já citado, também vemos Paulo fazer com relação a Onésimo no tocante a assunção da responsabilidade pelos danos que ele tivesse causado a Filemom, dizendo: “põe na minha conta”. Esta é uma das essências do perdão.    
VII) QUEM AMA LIBERA: O PRINCÍPIO DA RESPONSABILIDADE PESSOAL E A LIDERANÇA CRISTÃ, BEM COMO A IMPORTÂNCIA DO PEQUENO GRUPO
         Na epístola em exame, vemos que Paulo, tendo sido pai espiritual de Onésimo, afeiçoou-se a ele a tal ponto de querer mantê-lo consigo no serviço do Evangelho, contudo, o apóstolo sabia que Onésimo precisava resolver suas pendências com Filemom, bem como sabia que, por causa do vínculo jurídico de escravidão, não poderia retê-lo consigo sem passar pelos direitos civis que Filemom detinha sobre Onésimo. Apesar dos vínculos civis entre Onésimo e Filemom continuarem os mesmos, Paulo esclarece a este último que agora a relação deles do ponto de vista espiritual e afetivo seria diferente, marcada pela graça de Deus que incluiu Onésimo na família de Deus, tornando-o seu irmão.
         Pode-se depreender que, apesar de Paulo exercer liderança tanto sobre Filemom quanto sobre Onésimo, isto não lhe dava a prerrogativa de fazer o que quisesse com os dois, mas estava ciente de que deveria respeitar um princípio bíblico e moral inegociável, qual seja o princípio da responsabilidade pessoal de cada crente diante do Senhor pela sua vida espiritual. O papel da liderança é servir de canal da graça de Deus para a transformação do discípulo, orientando-o na verdade em que deve andar, entretanto não podendo ser um substituto da vontade dele. O líder deve instruí-lo na verdade e na disciplina e admoestação de Deus, deixando o discípulo trilhar no caminho que o Senhor estabeleceu para ele; o que passar disso é interferência indevida e manipulação em relação a uma vida que não é nossa, mas de Deus. Paulo não passou por cima da vontade quer de Onésimo, quer de Filemom, entretanto os instruiu na verdade do amor de Deus, deixando-os tomar as suas próprias decisões. As pessoas que o Senhor nos enviar para cuidar não são nossas, mas de Deus e quem ama libera, assim como o Senhor fez conosco desde a criação, concedendo-nos o livre arbítrio e deixando-nos colher as consequências de nossas decisões. As marcas de um bom e saudável relacionamento são a liberdade e a confiança mútua e, onde as mesmas não existem, não há amor. É assim que Deus nos trata e é assim que devemos tratar os outros.
         Outro princípio posto em relevo é o do “pequeno grupo”, ou seja, da importância que o filho de Deus tem de desenvolver novos relacionamentos sadios com seus irmãos na fé, marcados pela liberdade e confiança mútuas, não só para que absorvamos os padrões de Deus constantes de sua Palavra, mas também para que as barreiras à graça e à fé que nós temos em razão de relacionamentos prejudiciais, destrutivos e pecaminosos que tivemos no passado e que afetaram a nossa saúde emocional e espiritual possam ser removidas, as emoções curadas e a mente renovada. Precisamos andar na luz com uma vida transparente em relação a quem somos e no que precisamos crescer espiritualmente, bem como das áreas que precisamos de santificação, e o pequeno grupo, que pode ser uma reunião de amigos na fé, uma reunião familiar, um núcleo de evangelização, um ministério, um discipulado, um aconselhamento cristão, entre outros tipos, bem como a construção de amizades maduras, são fundamentais nesse processo de maturação do caráter cristão e no aperfeiçoamento do amor. Não podemos desprezar isso e caminharmos sozinhos no Evangelho, bem como temos de possuir a consciência de que tais “grupos” e amizades maduras só são canais de cura se tivermos a oportunidade de expor a nossa vida e intimidade, em um ambiente seguro e acolhedor, para que o nosso orgulho seja quebrado e o nosso falso “eu” seja confrontado e morto diante da cruz de Cristo. Além disso, o pequeno grupo tem de possuir um ambiente de aceitação afetuoso, sem críticas e julgamentos iníquos, bem como de apoio pessoal, com a admoestação na verdade com brandura e prestação de contas, além de propiciar a oração pessoal e coletiva, cumprindo um importante princípio de cura contido em Tiago 5:16: “Confessai, portanto, os vossos pecados uns aos outros, e orai uns pelos outros, para serdes curados. A súplica de um justo pode muito na sua atuação” (ARC). É dentro deste ambiente acima descrito que as pessoas podem se expor, ser confrontadas em seu orgulho, bem como orar e nós juntamente com elas para que as lembranças amargas que as mantém presas sejam cobertas pela graça de Deus e o perdão brotar no coração, curando-a (cf. SEAMANDS, David. Se ao menos. Venda Nova: Betânia, 1996, p. 121-129 – este livro é baseado no episódio da ressurreição de Lázaro e é indicado para tratar pessoas que desenvolveram uma autoimagem de vítimas diante dos problemas e passam a vida colocando a culpa em outros pelas suas frustrações e complexos; no mesmo sentido, SEAMANDS, David. O poder curador da graça. 10ª impressão. São Paulo: Vida, 2006, p. 156-159 – neste aqui a ênfase é o tratamento do perfeccionismo e as barreias que nos impedem de receber e internalizar no coração a graça de Deus). É impressionante a força e a graça que Deus nos concede para superarmos as mágoas quando oramos, juntamente com outros, nesse nível de transparência aos expormos nossos sentimentos feridos, bem como as estruturas de orgulho deles resultantes, confessando e renunciando os mesmos diante do Senhor, sob a orientação do Espírito Santo, o qual testemunha no nosso íntimo a Verdade de Deus e as verdadeiras motivações do nosso coração, capacitando-nos para perdoar o imperdoável.
         Qualquer que seja a metodologia utilizada pela congregação, o princípio do pequeno grupo com os ingredientes acima descritos e as amizades maduras devem ser cultivadas e incentivadas de forma equilibrada e com responsabilidade pessoal, a fim de que a igreja seja revestida do poder e da graça de Deus que marcou os tempos da igreja primitiva.
VIII) CONSIDERAÇÕES  FINAIS: RECEBENDO A GRAÇA QUE MUDA SITUAÇÕES DIFÍCEIS DE FORMA INESPERADA
         Acima de tudo que foi aqui exposto, não se pode esquecer que todas as circunstâncias relativas à nossa restauração como pessoas estão no controle da soberana mão de Deus e nada pode escapar de Seu poderoso braço quando Ele decide agir em Seu tempo em nosso favor, ainda que de uma forma que não esperamos ou que nos cause a princípio algum desconforto, dor ou tribulação, o que deve gerar em nosso coração uma forte confiança de que Ele tem, desde antes da fundação do mundo (Ef 1), um projeto para nós, um propósito que Ele quer cumprir para o louvor de Sua glória na nossa edificação como santos e eleitos de Deus. Ele sabe exatamente aonde quer chegar conosco, Ele sabe como mover o nosso coração e os meios dos quais Ele utilizará para transformá-lo, bem como sabe como arquitetar todas as circunstâncias de tal forma que elas cooperem para o nosso bem.
           Quem poderia imaginar que um escravo fugido teria seu coração transformado e convertido ao Senhor no ambiente de uma prisão e que Filemom receberia como irmão alguém mui precioso e amado no lugar de um rebelde? “Porque bem pode ser que ele se tenha separado de ti por algum tempo, para que o recobrasses para sempre, não já como escravo, antes mais do que escravo, como irmão amado, particularmente de mim, e quanto mais de ti, tanto na carne como também no Senhor” (vv. 15-16 - ARC). Esse é o retrato da graça abundante de Deus: transformar-nos de escravos do pecado e inimigos da cruz de Cristo em filhos mui amados. Do ponto de vista humano, isto foi um milagre, mas, do ponto de vista divino, o Senhor sabia exatamente o que estava fazendo, uma manifestação poderosa da soberana graça de Deus no homem.
         Irmão amado, milagres acontecem nos dias de hoje, por causa da bondade de um Deus cheio de amor e compaixão. Quer receber o seu? Tenha fé no Senhor e na força da sua consolação e tome as atitudes corretas de acordo com a vontade dEle revelada nas Escrituras e persevere.
         Que Deus encha o seu coração com a graça que cura.

Pablo Luiz Rodrigues Ferreira
Fevereiro-março de 2012
rugidodaverdade.blogspot.com


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